Escrevo este manifesto para demonstrar que se podem realizar acções opostas, ao mesmo tempo, num único e fresco movimento. Sou contra a acção; e em relação à contradição conceptual, e à sua afirmação também, não sou contra nem a favor.


Pedro Marques @ 19:20

Ter, 15/09/09

 

 

 

 

Poisas sólidos pés sobre tantas traições e no entanto foste jovem e tinhas quem sinceramente acreditasse em ti.

 

Ruy Belo




Pedro Marques @ 17:07

Qui, 13/08/09

Às vezes sabes sinto-me farto

por tudo isto ser sempre assim

Um dia não muito longe não muito perto

um dia não é que eu pareça lá muito hirto

entrarás no quarto e chamarás por mim

e digo-te já que tenho pena de não responder

de não sair do meu ar vagamente absorto

farei um esforço parece mas nada a fazer

hás-de dizer que pareço morto

que disparate dizias tu que houve um surto

não sabes de quê não muito perto

e eu sem nada pra te dizer

um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto

não muito perto desse tal surto

queres tu ver que hei-de estar morto?

 

Ruy Belo, Homem de Palavra(s). Assírio & Alvim.




Pedro Marques @ 03:15

Sab, 27/09/08

Descobri um belo poema do Ruy Belo dedicado à personagem interpretada por Natalie Wood do filme Esplendor na Relva do Elia Kazan de que falei há uns dias atrás. Não resisti a partilhá-lo convosco.



Eu sei que Deanie Loomis não existe
mas entre as mais essa mulher caminha
e a sua evolução segue uma linha
que à imaginação pura resiste

A vida passa e em passar consiste
e embora eu não tenha a que tinha
ao começar há pouco esta minha
evocação de Deanie quem desiste

na flor que dentro em breve há-de murchar?
(e aquele que no auge a não olhar
que saiba que passou e que jamais

lhe será dado a ver o que ela era)
Mas em Deanie prossegue a primavera
e vejo que caminha entre as mais

Ruy Belo
, O Bosque Sagrado.



Pedro Marques @ 13:09

Seg, 14/07/08

Quando pelos jardins passavam as hirtas e rígidas escravas
quebradas na cintura pelos seus cintos de seda
e era bem mais fácil manter o equilíbrio estival da humidade dos pés

quando os homens se compraziam em falar do vento
a propósito do movimento vivo ou lento dos canaviais
a associar tempo e vento para decretar
que coisas idas com o vento não regressam mais

quando a prosperidade vinha nessa mansa sujeição aos frutos anuais
e casos de prudência e fortaleza eram minuciosamente inscritos nas crónicas reais

quando os alicerces da alegria se cavavam nesse fumo branco que subia dos altares
e não se dava o nome de humildade à coragem mais íntima
nem o de ingratidão ao facto de banir um cortesão qualquer
pois inúmeras vítimas conviviam com os reis

quando o tédio não era em tempo prósperos
a inútil herança de uma antiquíssima experiência
e não havia encontros com as trevas nem desejos
satisfeitos jamais se mais se prolongavam e se renovavam

quando as árvores de ariccia protegiam ainda os sacerdotes de diana
e as pátrias não eram como agora o sítio onde se morre

quando um homem qualquer concedia a outro homem
a gratuita palavra capaz de conferir a um destino efeitos suspensivos
debaixo de arcos do passado junto de pedreiras protectoras de alguns vagabundos
de uma lentidão de certo modo mágica
e mesmo levemente inquietante
sem escamas nem esporões possivelmente próprios mais de deuses
habitantes um tempo de uma terra plana à força de submissa

quando a solidão não era a vocação exclusiva de poetas
mas até de roseiras agapantos glicínias certas árvores
solidão mais sensível nessa sombra envolvente em certas épocas do ano
se a não sulcam uns olhos alguns passos de súbito recuperados
e secam nalguns muros os últimos musgos

quando a infância não assumia ainda as dimensões de uma cara
enorme mas inerme ante os que mais tarde a evocarem

quando as lágrimas não eram nesse tempo densas e fechadas como pedras
nem deixavam nos rostos indeléveis como
de certo modo deixam no trilho do seu canto os rouxinóis

quando não era solução a solidão conjunta dos conventos
mas eram lágrimas ou caras solidárias de vagares e de um certo convívio com o mal
e a esperança que existia servia a sua boa hora
e se dizia boa tarde com a consciência de que se dizia adeus
às vezes sem saber-se que era para sempre que se dizia adeus
e todo o tempo se passava em coisas de imaginação
sem arriscar demasiados movimentos
até pela simples razão de que as rajadas da luz
eram a bem dizer as únicas estradas
na maior simplicidade geográfica dos sítios
nos rubis e ametistas mesmo nas primeiras pérolas kepta
não integradas todavia das alíneas anuais da moda

quando os homens ruminavam longamente a infância
e tinham à mercê adolescências muito prolongadas
fruíam com fervor o imenso favor da solidão
se os crepúsculos caíam numa luz lilás
que só vi uma vez em portalegre de uma janela da casa de josé régio
ou os cabelos das mulheres se prendiam nesta ou naquela das mais altas bouças de tojo
que dão àquele que passa a impressão de terem visto o verdadeiro amarelo
e as próprias mulheres recortadas no ar crepuscular
como ciprestes muitas vezes mas talvez umas horas mais tarde
quando perfuram decididamente a mais escura escuridão
e temos o pressentimento de que alguma coisa vai por fim acontecer

Ruy Belo, A Margem da Alegria, Editora Presença.



Pedro Marques @ 00:13

Seg, 09/06/08

Quando a estratégia do prazer era tão minuciosa e forte
que com a astúcia habitual da morte conspirava
mas sempre era possível a surpresa do prazer
independentemente da cíclica multiplicação das represálias
como narrar à noite a última aventura desse dia
ou apenas falar de uns olhos onde havia a água da doçura
e à volta um rosto paciente e sereníssimo
bastante para alguns planos de um filme a preto e branco
bastante pra pensar que apenas para o ver valeu a pena ter nascido

quando o mínimo gesto era um gesto criador
e as coisas começavam e o mundo sempre em simples sons se descobria

quando ninguém ainda se movia na periferia da necessidade ou da conveniência
e havia gigantescas tílias que nos davam sombra em troca do cansaço
e a formosura das mulheres se notava até na violência do silêncio
junto às folhas recentes das amigas amoreiras perto de ameixieiras encarnadas

quando as águas do mar eram ainda águas sem medida revolvidas
e não como hoje são domésticas e mansas

quando os homens viviam na intimidade da sensibilidade e dilatavam
as narinas para aspirar profundamente o cheiro do suor
das mulheres quando após o esforço principia a arrefecer
e todas as palavras eram relativamente novas e calmas e caíam como pétalas
e não havia tantas tão miúdas minudências rodeando os corpos

Quando as raparigas punham todo o peso da sua esmagadora juventude
no pé e o pé no pó das antigas estradas a caminho das fontes
onde a água corria pelos vagarosos dias desse tempo

quando os cortesãos nos refeitórios de alto pé direito e telha vã
renovavam as rosas do colar murchas pelos campos até de madrugada

quando não só as salas mas as vidas não ficavam
de repente vazias de convivas
que temiam olhar uns para os outros e medir nesse olhar as dimensões da solidão
e só sentiam como algum remédio para a solidão
abrir as salas aos nocturnos bois dos campos circundantes

quando de repente os dias começavam a correr
na indisciplinada vibração do perigo
ou se não demoravam na hábil e discreta
sondagem dos menores movimentos dos antigos povos


Ruy Belo, A Margem da Alegria, Editora Presença.



Pedro Marques @ 21:55

Qui, 22/05/08

Quando a ociosidade fazia o tempo demorar e quase que parar
e sempre acentuar a densa duração dos dias
e ao menos um amigo se tornava o adversário imprescindível

quando colher rosas nas sebes se tornara já um ritual
para as flores mortais mortais às vezes para quem as colhe
rosas vermelhas as mais olorosas as que mais depressa morrem
as que são um instante apenas ó rosa solitária e rubra que espero encontrar
no quarto onde eu morrer sozinho e donde sozinho sairei
sem servir de pretexto às mais sentidas manifestações de pesar

quando continuemos já nas casas fabricavam os primeiros licores de frutas
e as jovens concubinas eram simples e sensíveis insolentes mesmo
fiéis a uma moral própria nunca normativa
mas nascida dos actos ou então de decisões a longo prazo

quando em salões aveludados se teciam considerações sobre temas vários
como o da alma o da diversidade e quantidade das flores existentes
enquanto pelas bermas secas se formavam miosótis com um mínimo de cor
e a cúpula das áleas lembraria um dossel de folhas encarnadas
em castelos talvez de paredes ou muros devorados pela hera
onde os cães de infinitos olhos circundavam e sugavam as pessoas
com uns gestos domésticos não descritos nas palavras dos profetas
invariavelmente loquazes sempre que alguém falava de leões
onde as donzelas ingressavam em silêncios tão cingidos como certas árvores
nalsguns finais de tardes com o sol envolto já em nuvens
sobre a terra indecisa agressiva porém nos seus perfumes penetrantes
à hora em que magníficas mulheres como a de sacher-masoch põem pentes nos cabelos
e variegados tons ostentam em seus rostos
sob os ramos mais derramados dos chorões
mas prontas a romper em pranto aos simples canto
de uma ave talvez oculta numa umbrosa laranjeira de dezembro

quando flores inominadas de repente começavam a dilacerar-se
na íntima penumbra dos palácios populosos
e doentes doridos indefesos ante os dados dos sentidos
tinham toda a sensibilidade de quem tem a curto prazo a duração ameaçada
e sabiam que a tinham talvez devido às palavras cegas
de algum profeta industriado na indústria de viver
com os pés postos em arroz selvagem e a cabeça vizinha de sinceiros

quando algumas pessoas decidiam sacudir a solidão
e vagabundear por corações alheios sugando-lhes o sangue
embora nos antigos sacrifícios nunca ninguém bebesse o sangue
das vítimas não tivesse também de lhes beber as almas

quando nas casas a confiança da infância ainda não esmorecera
e havia gente interessada no ressurgimento da cartilha da emoção
e já se pressentia a delicada dinastia
das coisas transmitidas de uma geração pra outra geração

Ruy Belo, A Margem da Alegria, Editora Presença.



Pedro Marques @ 14:43

Dom, 11/05/08

Quando já pelos prados o orvalho
aspergira as inúmeras pétalas das primeiras flores
e corriam as lágrimas ao longo da já longa idade
de homens onde o rio da alegria já secara há muito
talvez suponho eu no tempo dos primeiros salmos admoestadores
em que os olhos se abriam para o medo das mensagens mais funestas

quando o mel se multiplicara já pelos cortiços sob os novos cedros
e tendas de listrados panos já se erguiam nas dunas junto ao mar
e o vento consigo trazia a flor do cacto que mal nasce logo morre
na carne tumefacta e inaugural
e transportava aromas densos e procriadores ainda então
e os nossos bens na terra eram os olhos que regavam novos campos

quando as tardes eram notoriamente altas e as sulcavam
vozes de muitas raparigas que voltavam das fontes ou de minas com avencas
de bilhas muitos esguias à cabeça bilhas que prolongavam o seu porte
o seu andar seguro e digno bilhas de mãos fincadas nas ilhargas
bilhas extremamente sabedoras desgastadas afinal pelo convívio
com os limos com os seixos muito brancos e moldados pela água
na época do ano em que a chuva restituíra à terra em forma líquida
parte da água que há muito lhe devia e agora humedecia coisas
insignificantes como os humílimos botões dos musgos a capa muito verde
de certos muros erguidos para demarcar os bens com que a prosperidade
nos presenteara e o tempo a pouco e pouco tais demarcações dissimulara
na palidez das tarde invernais de um determinado roxo levemente tintas
nessas obnubiladas sentinelas dos antigos casarões de esconsas ruas

quando entre a noite e nós se estabelecia um parentesco cúmplice
visível em mansões quadradas devassadas por inumeráveis ventanais

quando a magnólia branca e concentrada concentradamente branca
exibia esse branco como uma bandeira da paz íntima da terra
e o sol conspirava na suspeita mansidão de alguns quintais
e os piões quadrados já rodopiavam sobre as mesas

quando nas grandes salas de família as mãos multiplicadoras das mulheres
às vezes desdobravam as alvas de linho ocultas quase sempre em arcas
muito velhas arrancadas às vezes às arcas pelas sucessivas gerações e eram
temporais e misteriosas cheias de leves cheiros e capazes de repente
de congregar os mortos mais recentes os mortos mais antigos numa
assembleia nocturna dispersos de repente pela luz de mais uma manhã
especialmente no dia da senhora das candeias quando o sol além de sol
era prenúncio de que se sucederiam sete meses prósperos e secos

quando as mulheres movendo-se moviam os cabelos populosos
e conheciam incontáveis nomes e eram conhecidas por nomes incontáveis
e nunca esses nomes as continham quando as mulheres sabiam
coisas que muitos homens pensaram no passado mas depois esqueceram
e elas repetindo-as iam de uma sala para outra ao sabor das situações

quando as pessoas já eram mortais mas não o eram assim excessivamente
e se reconheciam a si próprias nuns olhos alheios
e a sua pele humedecia e se tornava cada vez mais fina
sem deixar de ser pele sem passar a ser cútis a não ser nos anúncios
ou nos salões de cabeleireiras onde sempre só se fala dos outros
da vida privada dos outros dos pequenos escândalos diários
e fora disso havia a barba que crescia e que cobria a cara
com que uns homens outros homens encaravam
e a vida era vivida quase sempre como coisa súbita

Ruy Belo, A Margem da Alegria, Editora Presença.



Pedro Marques @ 01:36

Dom, 04/05/08

É dia dentro em pouco minha única mulher
já vai fugindo a noite que num poço se concentra
e a excessiva luz não deixa ver
e por demais te amo para amar-te
vivi tanto os instantes que são séculos agora
vai fazer anos era outono
eu tinha-te era dono assim mantinha-te
No peito que era teu uma pedra me pesa
pedra que se concentra e tudo arrasa
e tudo alisa como tudo o que se usa
Tenho gestos objectos e dias a mais
eu que só necessito ouvir as fontes
só assim me povoa o nada circundante
Há a manhã no mundo alguém é inocente
o silêncio é maior que muita gente
(...)
Olhar era para nós olhar apenas
havia em nossas mãos restos de dia
coisas que o sol ao pôr-se não queria
Sou desta terra fico um pouco neste céu
e destas oliveiras onde fala só o vento
e diz não sei o quê fala possivelmente por falar
Mas eu esqueci coisas até como esse vento
eu que na praia deixo qualquer coisa minha
um pensamento uma pegada restos de verão
Ela tinha na face um pouco da manhã
o fogo era indiscutivelmente rubro
devorador irresistível e sorria
(...)
Vejo no céu qualquer coisa de meu
o dia acaba alguém se lembra de morrer
parece um pouco que não há nada a fazer
não me perguntem em que empreguei o tempo
creio que a bem dizer não fiz mais do que olhar
e há tão pouca gente que só saiba olhar
A morte não é coisa para os homens
e um cadáver cresce ocupa toda a casa
é uma coisa incómoda até que o despejam como lixo
Eu venho do verão com o aspecto
do camponês que volta da vindima
por uma estrada aberta no crepúsculo
entre filas de choupos cada vez mais indecisos
e que cada vez menos se perfilam quando passo
e quase não perfuram já o véu do céu
Velas brandões archotes tanto faz
eu quero é luz possível solução
para a morte que há na minha vida
As flores são mais flores ao crepúsculo
são um pouco de luz quando a luz falta
e é quando a noite vem que elas florescem
a neblina da tarde faz-lhes bem
Há quem caia no mar há quem tropece em deus mas eu
tenho terra nas mãos na terra tenho
mais que terra dos campos terra antiga terra
onde há homens e tempo terra terra
seja onde for tenho afinal um pouco de portugal
Dizem-me que morreste que fazer?
Eu era pouco mais que certos gestos
e já quase nenhuns têm sentido
Sentia-me à vontade nesta vida
e agora compreendes sinto-me perdido
nunca sei já onde as coisas estão
Fecho às vezes as mãos e fecho-as em vão
não preciso de muito mas de um mínimo preciso
No teu pequeno rosto eu tinha quase tudo
infância mar países aves certos livros
rescendias talvez ao feno se ceifado
havia laranjas em teus cabelos
ou giestas em flor que não florescem mais
no cume do imóvel mês de maio
contigo adormeceu a vida toda
a sombra cerca-me não tem menos do que duas mãos
A abóbada de pedra sobre a tua morte
é um céu todo à tua medida
irrequieta vida mineralizada
O dia suspendeu-se é meia-noite é meio-dia
está tão escuro agora como luz antes havia
O que eu quero é o espaço onde caiba uma rosa
um mínimo de terra alguma vida
Tira o ceptro de sobre o almadraque
teu manto de rainha cobre agora portugal
quando à terra desceu a vida toda
na noite que couber entre coimbra e alcobaça
Na tua carne podre enterro o bico como um corvo
cubro o teu corpo morto não vás tu sentir o frio

Ruy Belo, A Margem da Alegria, Editorial Presença.



Pedro Marques @ 15:45

Ter, 29/04/08

Vem ao meu pátio ver crescer a sombra
ó cheia de dois olhos minha amiga
Olha-me olha-me como quem chove
conicamente sobre
um coração deposto
do corpo que o cercava

No ulmeiro do caminho
vegetal comentador do nosso amor
a folha tímida não partiu ainda
e ameaça encher a tarde toda
Cubra-te ela a fronte
quando morrer aquém dos pássaros

Repousa minha amiga as mãos
sobre o lugar onde estiveram as palavras
e que os gestos
arredondem um templo para a luz
que dos olhos despedes

Já nos pesa nos pés a sombra
e pomos-lhe por cima o pensamento

Ruy Belo, Aquele Grande Rio Eufrates, Editorial Presença.



Pedro Marques @ 22:52

Dom, 02/03/08

Mulher madona de ar de quem domina
mulher um dia minha mesmo se ela o adivinha
e tem tão brancos dentes que jamais eu antes
vira uma vez sequer num rosto de mulher
e tem na pele a alvura da luz que inaugura
o dia ou a alegria onde uma vida principia
e ao começar termina a luz com que ilumina
e tem essa grácil cabeça onde o amor começa
e onde se constrói o que dentro de pouco se destrói
e atribui uma intenção a um aperto de mão
mais durador que a duração do gesto dessa mão
inês diz o poeta ou pedro ou o poeta pedro diz
não me dês numes dá-me apenas nomes
ou coisas sensuais e não sensíveis como os animais
talvez tão minerais como esse olhar que ao vê-lo não esquecemos mais
tu que fazes dos homens lobisomens
tu que a ti mais te consomes sempre que os consomes
com as mãos no regaço e circunscrita ao espaço
formosa feiticeira que joeira a eira
ou génio ou fada ou vida ameaçada
Penso em ti ó mulher imerecida
no rosto acidentado só por rugas momentâneas
na forma mulheril de te moveres
nessa desenvoltura com que quebras a cintura
na sede de silêncio do teu cérebro
e nesse olhar alheio que eu teus olhos colho
e um instantâneo som cerúleo me comove
e há coisas em ti tão altas como a vida
chove e sinto-me bem quando na noite envolto
Oiço dentro de casa que lá fora chove
dizes somente a solitária lágrima
que te humedece os olhos caminhamos
e há em nossos ombros numerosas folhas
Nasço subitamente há mundos no teu rosto
antes de ti ninguém na verdade houve
chove posso dizer pela primeira vez que chove
Esperar por ti não é esperar por ti
esperar por ti é ter talvez esperança
ou é esperar com minudenciosa paciência
e desenhar teu rosto em cada rosto que vejo surgir
na minha alvoroçada vizinhança dos teus passos
Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado
Quando te vejo e embora exista o vento
nenhuma folha nas múltiplas árvores se move
ver-te é logo todas as coisas começarem é
tudo ser desde sempre anterior a tudo
Ver-te é sem tu me veres eu sentir-me visto
sentir no meu andar alguma segurança mínima
caminhar pelo ar a meio metro da terra
e tudo flutuar e ser ainda mais aéreo de que o ar
ver-te é nem mesmo pensar que deixarei de ver-te
ver-te é sentir pousar mais que um olhar
uma mão muito calma sobre a minha vida
ver o teu rosto é ter toda a certeza de que existo
que sempre existirei que não há mais ninguém
ver o teu rosto é mesmo mais do que nascer
empreender viagens começadas nesse rosto
donde podem sair inúmeros navios
ver o teu rosto é como tudo começar
corrida a minudenciosa prega do silêncio
silêncio alto como um cerro inesperado como um curro
aéreo como um cirro denso como um cerro
prosaico às vezes como a mecânica de um carro
Vejo-te e povoas só de folhas que depois desfolhas
os rasos descampados que te cercam por todos os lados
Caminho ao teu encontro
a juventude é como uma oportunidade
começa a ser outono a tarde é território para a luz
tem certas listas como um fato cinzento
toco-te apenas para ver se estás aí
um país se arredonda à tua volta
sinto todas as coisas no lugar
Quando te vais embora fico de repente ao abandono
sem ao menos a protecção de uns olhos de animal
da copa arredondada de uma árvore
Vais-te embora e deixa de haver árvores no mundo
e não tenho palavras e não tenho voz
não conheço ninguém nenhum ouvido
que se possa ajustar à forma do meu grito
E desço da liteira como quem desce da vida
como que me separo de mim mesmo
sinto-me inexplicável e na rua
para sempre irremediavelmente na rua


Ruy Belo, A Margem da Alegria