Aterrar por entre nuvens baixas, os campos da estepe a perder de vista, o sol banhando o verde indistinto. O aeroporto parecia luminoso à luz de Julho. As formas arredondadas davam-me as boas vindas. Eram umas boas-vindas que vinham dos anos 70. Dos anos a que, para mim, cheiram os livros. Um cheiro delicioso, uma mistura de papéis velhos e folhas de árvore. E os filmes animados... (para mim também tinham cheiro) dos mesmos anos, apresentados pelo saudoso Vasco Granja.
Atravessei a barreira dos passaportes, onde se tem um vislumbre da severidade da sociedade, eles não fingem que vêem os passaportes, eles vêem mesmo, ou mesmo que não vejam, fazem-nos pensar que viram, deixam-nos à espera o tempo suficiente para nos terem na mão. Fazem-nos ver desde o início que não estamos em casa. Não quer dizer que não sejamos bem-vindos. Não, apenas que aquele não é o nosso país e que devemos fazer as coisas como eles fazem. Passo o controlo, espero uns instantes, fumo um cigarro e encontro os italianos e belgas que vinham no mesmo voo que eu.
À saída do aeroporto dezenas de taxistas perguntam-nos se precisamos de carro. Ao mesmo tempo, num letreiro em inglês e russo (coisa rara) lê-se, "tenha cuidado com os taxistas!" Aprendi que é nesta contradição que a Rússia vive.
Autocarro até Beliáievo. Instituto. Subo ao meu quarto. Décimo andar. Com o Cris e o Di. Ao lado o Cor. que deve permanecer incógnito. Mais tarde chegaria o Tó, espanhol. Vou às compras, o pôr-de-sol acompanha-me à ida e à vinda. Que simpatia. Na minha segunda descida alguém me aborda no corredor. "Tu és português, não é?" E eu "Sim, sou." Ele olha-me com olhos entre o aliviado e o desesperado e confessa que está ali há várias horas sem conseguir falar com ninguém e precisava de encontrar alguém português. Eu também, claro.
Era o Emanas!
I think this can be the beginning of a beautiful friendship.
Mas na versão Gato Preto, Gato Branco, bem entendido...
* Para o Emanuel.
Finalmente de volta. Moscovo é uma cidade belíssima, os russos são um povo contraditório, altamente sedutor e atractivo mas eu já estava a precisar de Lisboa e da desordem tão portuguesa. Talvez seja esse o traço mais característico dos russos que conheci. A sua obsessão pela ordem. A mania de quererem controlar tudo sempre, a mania de quererem mostrar sempre aos outros que eles têm algum poder e sabem o que fazem. O caso mais estranho foi quando nos quisemos despedir de colegas no exterior do edifício Puschkin onde estávamos alojados e não pudemos sair. Apenas porque não. É uma mentalidade formatada por anos de regras duras, cartazes de propaganda (por muito artísticos que sejam), disciplina e muita paixão.
Para além da ordem os russos gostam muito de vodka. Até os posso perceber. Quando ela é boa, como é o caso, tal como a cerveja russa que é quase sempre óptima, não dá nenhuma ressaca, o que convida sempre à repetição, principalmente quando estamos numa casa de estudantes com gente de todo o mundo que vamos todos os dias conhecendo e aprendendo a amar. Meu Deus, que sessões, que concertos improvisados, que jantares opíparos, que mulheres lindas e pessoal simpático!
A outra coisa que os russos gostam é de flores. Pode parecer estranho, mas é verdade. Por todo o lado, em cada esquina há uma loja de venda de цвети (que já agora no singular "цвет" tanto quer dizer flor como cor, bonito não?). Por todos os parques vemos arranjos florais que formam desenhos e letras. Oferecer e comprar flores parece ser um passatempo e um hábito bastante bem enraízado. Posso compreender, quem não ofereceria semanalmente flores àquelas mulheres?
Outra coisa de que os russos gostam é de carros com vidros fumados. Não é porque tenham alguma coisa a esconder, não, é porque é estiloso. Os russos também têm a sua grande dose de pimbarice. Só que ao mesmo tempo conseguem conviver com carros a cair de podre. E esse é um dos grandes encantos de Moscovo. Parece uma cidade humana, cheia de contradições, os prédios são velhos, dos anos 50 e 60 a maior parte, mas nada parece fora do lugar. As urbanizações são pensadas de acordo com um projecto bem delineado. Nada é feito ao acaso. Não vemos prédios a serem construídos ad lib e depois ligados por uma estrada mal parida e um rotunda absurda como cá. Tudo é previsto e nada parece não ter uma função. Ainda que as coisas tenham o ar de usadas, é esse o fascínio, não há regras da CEE para normalizar friamente todos os aspectos da vida. Não há nada disso. Moscovo ainda parece uma cidade habitada por seres humanos. Contraditória, com estádios a cair de podre e jardins em flor. Teatros em reabilitação e avenidas com buracos.
Finalmente lembrei-me da password do blog e posso escrever este post. Este mail serve para vos dar conta daquilo que se está a passar no Instituto Puschkin em Moscovo.
Primeiro: Moscovo é uma cidade bela, a harmonia dos inúmeros parques conjugada com as avenidas gigantescas, normalmente com quatro vias de cada lado, e os prédios gigantescos é quase perfeita. O rio que cruza a cidade é de dimensão média e é como mais uma auto-estrada, desta vez azul. Se decidirmos caminhar (como o Marco Bacanovitch que é maluco) ficamos cansados, mas como alternativa temos o metro que para além de ser barato (cerca de 22 rublos (sem passe) - 50 cêntimos a viagem) tem a vantagem de fornecer um comboio de minuto a minuto, na hora de ponta chega a ser de 30 em 30s. As estações mais antigas são belíssimas, as carruagens antigas.
Temos ainda os museus Tretiakov, Puschkin e Maiakovsky para ver, a Praça Vermelha, uma data de catedrais e mais nao sei quantos teatros - o Bolshói esta fechado para remodelações, tal como é costume dos russos, que aproveitam o Verão para fazerem obras e reparações. Podemos deitar-nos nos parques, isto se não chover, o que aconteceu em metade dos dias.
Se não fizermos vida de turista, a vida é a metade do preco. No supermercado qualquer produto é facilmente metade do preço que em Portugal. Tabaco Marlboro não chega a 1 euro. Não sentimos falta de nada, talvez apenas de mais simpatia por parte dos russos que são um povo bastante desconfiado e fechado. Terem passado cerca de um século em convulsões nao deve ter contribuido muito para a sua abertura. É depois de os conhecermos que ficam simpáticos, ate lá sao pessoas de poucas palavras e raramente lhes vemos os dentes.
O Instituto Puschkin está situado na extremidade Sul da cidade. A cerca de meia hora de comboio. É como ir de Cascais a Lisboa de metro. Esta cidadela é habitada por cerca de um milhar de estudantes de todos os pontos do mundo: da Coreia ao Equador passando pela Eslováquia, Senegal, Brasil, etc. So não há americanos e ingleses. Curioso.
Os dias passam-se a estudar da parte da manhaã e a tarde com viagens para a cidade. À noite ainda há tempo (se tivermos dinheiro e disposição para frequentar alguns bares). Talvez da próxima vez vos fale dos bares de rock e blues onde já fomos. Bastante interessantes... até já.
A partir de dia 30 o blog vai passar para a Rússia. Vou tentar mantê-lo actualizado tanto quanto possível. Mas será mais um roteiro de viagem, com fotos, espero. Até 31 de Julho em Moscovo. Nunca fui tão para Oriente.
Eu não sou de sonhos, mas se tivesse que responder a um deles seria com esta viagem à Rússia. Agora só fica a faltar o transsiberiano até Vladivostok, com passagem para o Japão. A seguir, já que estamos em maré de sonhos, apanhava um avião de Tóquio para Los Angeles, vagueava um bocadinho pela costa Oeste dos E. U. A., fazia a route 66 até Nova Iorque e apanhava o avião para Lisboa.
Depois poderia fazer outra pelo hemisfério Sul que incluiria América do Sul e África a partir da Cidade do Cabo.
Mas pronto, isto é em sonhos, agora é só Moscovo durante um mês. Objectivo: aprender o máximo da língua russa. A gente vê-se.