Escrevo este manifesto para demonstrar que se podem realizar acções opostas, ao mesmo tempo, num único e fresco movimento. Sou contra a acção; e em relação à contradição conceptual, e à sua afirmação também, não sou contra nem a favor.


Pedro Marques @ 15:09

Ter, 24/02/09

Gustave Courbet, pintor realista do século XIX, queria que os temas da sua pintura fossem diferentes dos temas grandiosos que até aí atraíam os artistas do barroco: as grandiosidades dos reis e deuses, personificações de acontecimentos, como a revolução, etc. Numa altura em que a Revolução Industrial dava os primeiros passos, ele pintou mulheres e homens, simplesmente no trabalho, de cabeça baixa, como se os quisesse proteger com uma espécie de pudor pela sua condição de classe, pintou cenas triviais, encontros de amigos, mas acima de tudo, deu uma dimensão ao real completamente diferente daquela a que a sociedade de então estava habituada.

O sexo exposto neste quadro era tão abertamente pornográfico que questionava as noções de realidade da época.

Hoje em dia, para apreciar o quadro, ainda precisamos de passar por cima de uma grande quantidade de preconceitos. Ultrapassá-los e reformular o nosso real. Ao que parece, essa dimensão do real e a vontade de identificar preconceitos ainda falta em Braga.

Será que eles não sabem o que é uma pintelheira? Claro que sabem, que até as meninas de Braga a têm. Então qual é o problema deles?

A representação do real.

Quando fez 50 anos, Courbet disse que o seu mundo era o mundo da liberdade de expressão. Que diria ele agora agora se soubesse que o seu quadro foi censurado um século depois num pequeno e insignificante país ao Sul da Europa?

É sintomático, se bem que não surpreendente, que cerca de 150 anos depois a nossa sociedade não esteja preparada para ver um quadro como A Origem do Mundo sem o querer apodar de pornográfico. Não é só a ignorância das pessoas que denunciaram a capa do livro Pornocracia, que o reproduz, é também a da PSP (Polícia de Segurança Pública - Segurança?) que sem mandato judicial retirou todos os exemplares da feira e viu nos livros algo de pornográfico (será que os polícias nunca viram uma vagina apontada para eles?). É a ignorância, falso pudor e falsa consciência de toda uma sociedade que, primeiro, não está preparada para ver a representação de uma vagina com muitos pêlos em primeiro plano, exposta na sua mais nua realidade, segundo, não sabe que a pornografia é uma arte como a dactilografia e a radiografia e outras grafias, e last but not least, não tem qualquer problema em censurar a liberdade de expressão dos seus cidadãos, acha que o pode fazer e convence outras pessoas a promover o mesmo - acreditando que é mais fácil mandar para debaixo do tapete aquilo que mais problemas nos põe.

Eu tenho vergonha, que dirão os outros países da Europa quando souberem que a polícia portuguesa censurou um quadro de Courbet? Que risos condescendentes se abrirão nos seus rostos... estamos nós muito longe do regime Taliban que condenou as caricaturas de Maomé?

A novidade do caso é tanto mais grave quanto mais pensamos na sórdida inevitabilidade dele. E não vale a pena justificarmos a acção da polícia ou das pessoas que denunciaram (sejam elas quais forem, para mim até podia ser o Presidente da República), dizendo que o quadro até nem é bom, ou real, ou politicamente incorrecto, ou não-pornográfico, aquilo que toda esta rede censória demonstrou é que há portugueses que acham que podem dizer aos outros aquilo que eles devem publicar, ou escrever, ou pintar. Este tipo de pensamento ainda informa muitos dos portugueses e suas instituições.

É disto que devemos falar. E é contra isto que nos devemos rebelar.