Há um pássaro amarelo no meu olhar
Ele canta, mas não para mim
Vejo-o trinar
Mas não o ouço
Uma parede de vidro silencia-o.
Tenhos dois faróis no meu mundo
Iluminam-me, nas minhas trevas
Procuro a surpresa
Encontro a beleza
Num abraço eterno de vida e sol.
Ao meu lado um corpo de carne e ossos
Uma pessoa como eu
Tão perto tão longe
De mim, quanto eu
Agora, neste poema.
A memória do futuro afunda-se-me no cérebro
Revejo o passado, ele queima-me a pele
Dói-me o corpo do momento
Aqui e agora é tudo o que eu sei,
Num abraço eterno de vida e sol.
Objetos voadores ao sol
Novas nuvens no planador
Tirantes de plástico mole
Ele e ela - o amor
Lagostas suadas ao sol
Verde rosa pela paz
Explosão de plástico mole
Repetida num bordel ao sol
Deus de plástico mole
Careful with that axe, Eugene
Um planador voador ao sol
Explosão repetida - um bordel ao sol
Ele e ela na casa de Verão
Lagostas verdes de plástico mole
Nuvens rosa na explosão
Um bordel ao sol
Novos planos nos prédios da cidade
Aberta ao mal
Plástico mole nas fardas
Da explosão
Ele e ela pela paz
Num bordel ao sol
Tu estás em mim como eu estive no berço
como a árvore sob a sua crosta
como o navio no fundo do mar
Mário Cesariny, Pena Capital.
Na penitenciária
A copiar as letras dos maços de cigarros
O trabalhador e revolucionário socialista
Nikolay Vasilyev aprendeu sozinho a ler
Pegou em livros, usou o conhecimento
E escreveu, em maiúsculas,
‘SR. PROMOTOR PÚBLICO, SENHOR, FUI ATIRADO PARA ESTE BURACO
SEM RAZÃO
SEM LUZ, AR, ESPAÇO OU COMPANHIA
NÃO TEM DEUS?’
Não teve resposta
Uma noite, empilhou os livros em cima de si próprio
Pegou-lhes fogo e morreu carbonizado
Podemos aprender muita coisa com isto
Quando o conhecimento é ensinado por ignorantes
Não devemos temer os que queimam livros
Mas sim os construtores de bibliotecas
Edward Bond, tradução minha.
Falhas, todos temos
mas crónicos remorsos
são por mais indesejáveis.
Se agiste mal, ei
corta essa,
mas tenta pensar melhor
da próxima vez.
Não te deixes cair
em tentações melancólicas,
porque rebolar no lodo
só serve para te sujares.
Xutos & Pontapés, 78/82.
O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...
O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!
Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois?
- espírito e calor!
O amor é o amor - e depois?!
Alexandre O' Neill
amor na mesa da nossa sala na nossa casa deve ter ficado o papel com o nome e indereço e telef do hotel de florenza. podes mandar-me um sms já com tudo? amo-te
Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?
Ruy Belo, Homem de Palavra(s). Assírio & Alvim.
Separados fomos por cítaras e canto
E pelos longos poemas silabados
E entre nós deitaram-se paisagens
Que nos mantinham imóveis e distantes
Embora o fogo secreto das palavras
E a veemência do canto e das imagens
Embora a paixão das noites consteladas
E o nevoeiro tocando a nossa face
Separados fomos por cítaras e cantos
Como outros por prisões ou por espadas
Sophia de Mello Breyner, Obra Poética III. Editorial Caminho.