I could be bounded in a nut-shell, and count myself a king of infinite space.
William Shakespeare, Hamlet (II,2).
Na sala estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, António Fonseca (Derek) recebe o público a partir e comer nozes. Parte-as e tagarela com o colega Gonçalo Waddington (Alex), enquanto conta piadas em voz baixa sobre o acto performativo que se apresta para iniciar, antes da sua conferência sobre o funcionamento do cérebro.
A porta de entrada fecha-se, a luz muda e Alex dirige-se directamente ao público. O que se esconde por trás do seu rosto? Que máscara é a sua. Que persona? Que personalidade se pode desenhar nos seus traços particulares? Se entrarmos dentro desse cérebro que vemos então? Ligações químicas. Vemos que tudo é cientificamente mensurável e possui um peso específico. Não há fantasma dentro da máquina, há apenas a máquina. Mas, será?
É esta uma das perguntas primordiais que a peça conjunta de Mick Gordon (encenador e dramaturgo) e Paul Broks (neuropsicólogo) nos propõe. A resposta encontrá-la-emos, talvez, durante a peça, quando o ego de Alex se divide em duas distintas personae que se tornam quase indistintas. Podemos tornar-nos numa pessoa diferente?, pergunta Alice no final do seu monólogo da Cena 4.
A encenação do texto percebeu bem a importância da pergunta. O teatro é o local onde vamos ver (do latim theatrum), mas também transformar-nos, porque afinal “os nossos cérebros são máquinas de contar histórias. E o “eu” é uma história”. Se o teatro é o local onde se contam histórias e o “eu” é uma história, o teatro é local onde se descrevem “eus”. “Eus” colectivos, dinâmicos, que contam histórias. Local onde nos reformulamos quotidianamente, onde nos teleportamos antes do início da sessão e saímos depois, iguais, mas mais experientes, com mais uma história para (nos) contar. Neste sentido a peça escrita por M. Gordon e P. Broks vai ao coração e ao cérebro da cena teatral. O cérebro/palco será talvez a metáfora mais poderosa da peça. Se nos lembrarmos da frase de Shakespeare em epígrafe, então o palco é aquela casca de noz onde podemos ser donos do infinito. – E sê-lo-emos com a mesma desfaçatez com que António Fonseca parte deliberadamente os nossos supostos cérebros.
Sentados à mesa, recém licenciado e professor vão-se desdobrando em vários planos temporais e espaciais ajudados por um desenho inteligente do espaço cénico de Maria João Castelo que usa dois telões transparentes curvos que delimitam a área de representação e terminam, à direita de cena, numa cabine de som, tipo aquário, devidamente equipada com microfone e intercomunicador. Aprendemos na Cena 2 que esta serve para ouvirmos o resultado dos testes-diagnóstico feitos a Alice, quando faz visitas ao hospital, a mulher de Alex e filha de Derek. A iluminação faz uso de projectores de recorte para delimitar áreas bem definidas, como no monólogo inicial, onde se vêem apenas janelas para revelar o cérebro que Alex mostra ao público e também de um jogo de contraluzes quando quer abrir o espaço e incluir sombras por trás dos telões brancos. Os mesmos são usados para a projecção de imagens previstas já no texto dos autores.
Uma mesa, duas cadeiras, um balde e um anel são os outros elementos jogados na cena. O anel será primordial para percebermos a relação existente entre o casal Alex/Alice, ao passo que o balde funciona como recipiente que recolhe o cérebro de uma cobaia.
A história é aparentemente simples. Alex, partidário de um cérebro onde o “eu” unificado não existe, teleporta-se e, por erro, é duplicado. Alex passa então a ser Alex1, que continua no laboratório a falar com Derek, indagando o que correu mal, mas também é Alex2 que comemora o aniversário com a mulher num restaurante com a melhor vista da cidade. O problema agudiza-se com a necessidade que o professor tem de matar Alex1, já que ele é menos Alex que o próprio duplicado.
Ao mesmo tempo Alice, a mulher de Alex, tem um tumor no cérebro que a impede de localizar palavras, de nomear coisas. Estará ela a perder um “eu”? Será ela menos capaz de contar a sua história?
No final perceberemos (ou não?) que Alice não se deixa enganar pelos duplos que a visitam, crendo saber com quem fala. Será? Ela pensa saber quem é o original Alex, mas a dúvida instala-se sempre. E creio que sempre se instalará a partir do momento em que tentemos duplicar seja o que for. Não nos tinham já dito que o “eu é uma história”? As histórias não se reproduzem, contam-se e todas elas possuem um qualquer grau de imprevisibilidade, ou a construção de um “eu” místico absolutamente irracional. Será esta a aprendizagem que todas as personagens fazem: o “eu” é múltiplo, certo, é dinâmico, mas também é distinto de qualquer outro ser múltiplo e dinâmico, inclusive de um possível ser duplicado. A experiências diferentes correspondem padrões de comportamento diferentes que por sua vez correspondem a pessoas diferentes. Personae diferentes. De alguma maneira este espectáculo ecoa a temática de Persona de Ingmar Bergman também adaptado pelo mesmo encenador no ano passado no Porto.
A peça oscila entre estes dois momentos definidores: a necessidade que temos de identificar um eu que possa ser transformado, duplicado, mas de qualquer maneira identificável, e um ser em permanente mudança e dinâmico, alerta a todos os estímulos, pronto a negar o que foi dito apenas porque é assim que o cérebro funciona – as histórias têm sempre voltas imprevistas...
O espectáculo dirigido por João Pedro Vaz joga também nessa voluntária indecisão e serve de maneira orgânica e ajustada os altos e baixos do desenvolvimento narrativo. Os diferentes espaços vão sendo convocados, tanto sonora (a música e os espaços definidos com a ajuda do microfone e do intercomunicador), como visualmente (recorrendo a várias técnicas, tanto luminotécnicas como de vídeo). A movimentação de cena é simples mas de beleza subtil e cuidada tal como o registo dos actores, em especial os trabalhos de Catarina Lacerda e Gonçalo Waddington. António Fonseca compõe um professor ansioso, que já passou por um processo de duplicação e de alguma maneira o vê suceder-se outra vez com Alex, e que aqui e ali não mergulha o suficiente nesse vórtice da não-existência – tema central à peça.
Trata-se de um espectáculo de recorte cuidado e fino, com um texto inteligente e minuciosamente carpinteirado, espaço cénico, tanto visual como sonoro, de extrema mobilidade e possibilidades apoiado por um conjunto seguro de actores de grande sensibilidade e generosidade. Altamente recomendável.
Ego de Mick Gordon e Paul Broks
Tradução de Francisco Nicéforo
Encenação de João Pedro Vaz
Espaço cénico e figurinos: Maria João Castelo
Vídeo: Pedro Filipe Marques
Luz: Nuno Meira
Com: António Fonseca, Catarina Lacerda e Gonçalo Waddington