Escrevo este manifesto para demonstrar que se podem realizar acções opostas, ao mesmo tempo, num único e fresco movimento. Sou contra a acção; e em relação à contradição conceptual, e à sua afirmação também, não sou contra nem a favor.


Pedro Marques @ 20:59

Dom, 07/03/10

Que Deus vos proteja, benévola audiência,

assim demonstres que o espectáculo

vos agradou, estou agradecido.

Se permanecerdes em silêncio

revelaremos

um novo caso nesta terra nascido.

Vejam a cena,

aqui na vossa presença:

a vossa Florença,

mas para a próxima será Roma ou Pisa,

é de rebentar a rir tal coisa.

Esta saída, aqui do meu lado direito

é da casa de um Doutor

que aprendeu com um boi juiz muitas leis.

Aquela rua, ali naquele canto

é a Rua do Amor,

quem nela cai nunca mais se levanta;

podereis conhecer ainda

pelo hábito de um frade

se prior ou abade

vive no templo que fica ali em frente,

se não vos fordes embora de repente.

Naquela porta da esquerda,

vive, vindo agora de Paris,

o jovem Callímaco Guadagno.

Este, entre todos os outros bom companheiro,

ostenta todos as marcas e sinais de honra e mérito.

Uma jovem sagaz

foi por ele muito amada,

e por isso enganada

foi, como vereis, e eu gostaria que,

como ela, fosseis vós enganadas.

Chama-se Mandrágora a história:

a razão podereis vê-la

na representação, como adivinho.

Do seu escritor não se guarda grande memória;

mas, se não rirdes dela,

ele ficará feliz de vos pagar vinho.

Um amante mesquinho,

um doutor pouco entendido,

um frade da má vida,

um parasita manhoso e birrento

serão hoje o vosso divertimento.

E, se este assunto não é nobre,

por ser demasiado superficial,

para um homem que sábio e sério quer parecer,

desculpai-o: dedicou-se o pobre

com estas vãs fantasias

para tornar os seus tristes dias mais suaves,

ele não sabe

para onde voltar o rosto,

foi-lhe interdito

mostrar com outras façanhas outras virtudes,

um prémio para as suas atitudes.

O prémio que ele espera

é que se ponham a um canto a troçar,

dizendo mal daquilo que vêem ou sentem.

Daqui se vê, sem mais quimera,

que o nosso século se pôs a degenerar

aquilo que suas antigas virtudes representam,

pois a gente, vendo que todos censuram,

não se dá ao trabalho e sofrimento

de fazer, com mil sacrifícios, uma obra

que depois o vento gasta e a névoa encobre.

Mas, àqueles que pensam que dizer mal

e puxar-lhe os cabelos,

o aterroriza e o afasta,

eu previno-os, e digo-lhes que também ele sabe dizer mal,

e como esta foi a sua primeira arte,

como em qualquer sítio

do mundo onde o “sim” se ouve,

não estima ninguém,

ainda que lhe queira servir

alguém que uma capa melhor pode vestir.

Mas deixemos o falar mal a quem quiser.

Voltemos ao nosso assunto,

para que não se faça tarde.

Não devemos confiar demasiado nas palavras,

nem confiança dar a um imbecil qualquer,

que nem sabe se está morto ou vivo sequer.

Aí vem Callímaco

e consigo traz Siro,

seu servidor, e dirá a ordem de tudo.

Estejam atentos,

e não esperem, para já, outros argumentos.




Pedro Marques @ 18:11

Sex, 05/02/10

Durante aproximadamente 40 000-50 000 anos, à medida que as linguagens se foram desenvolvendo, inventaram-se novas tecnologias, mas também manifestações culturais orais e expressivas que permitiam que determinadas sociedades e grupos se lembrassem, reflectissem, celebrassem e interpretassem as histórias em permanente evolução e as respectivas identidades através de manifestações orais/verbais, corporais e artísticas. Os percursores dos sistemas de escrita apareceram há cerca de 100.000 anos, quando os humanos inventaram uma larga variedade de símbolos gráficos e mnemónicas (auxiliares de memória) para armazenar informação. Os símbolos gráficos eram naturalmente reproduções de fenómenos comuns do mundo material, como o sol, as estrelas, a fauna, a flora, as figuras humanas, etc. Os auxiliares de memória, como os nós (laços), os entalhes feitos em osso ou em bastões, os ideogramas, tinham funções linguísticas. Os nós datam do primeiro período Neolítico e atingiram o auge nos Incas sul americanos quipus - através do seu sistema elaborado de contagem. Enquanto os nós e os entalhes gravam números, avivam a memória e sugerem categorias, as imagens podem gravar muito mais informação e ao mesmo tempo sugerir características e qualidades. Há dezenas de milhar de anos, a comunicação por imagens apareceu na primeira arte das cavernas e, em alguns nativos americanos, os ideogramas foram usados bastantes vezes para transmitir mensagens complexas sem terem de recorrer à linguagem. Nós, entalhes e ideogramas ficam "incompletos" ou são uma "pré"-escrita, no sentido em que não usam as marcas ou imagens para comunicar um discurso articulado.

Os sistemas de escrita não evoluiram como a linguagem, foram antes inventados para transmitir discursos articulados através da gravação de marcas convencionadas e artificiais numa superfície dura. A palavra escrita transformada em signo representativo. Na Mesopotâmia, eram usadas fichas em barro cerca de 8000 a.C. para contar grão e animais nos acampamentos rurais da região. Cerca de 3000 a.C., os sumérios, na Mesopotâmia, conseguiram desenvolver, a partir de um reportório de ideogramas e símbolos, o primeiro sistema de escrita - a escrita cuneiforme. A escrita cuneiforme é uma forma de escrita raspada ou inscrita em pedaços de barro com uma ferramenta pontiaguda (agulha). Com essa invenção dos sumérios, os indivíduos começaram a ler um sinal inscrito em barro e a vê-lo como um som de valor independente.

Por volta de 2500 a.C., a escrita cuneiforme simples era capaz de "comunicar qualquer pensamento... preenchendo exatamente as necessidades da sua sociedade". As primeiras inscrições são listas de pagamentos, de bens, de pessoas, etc. De todas as inscrições cuneiformes descobertas, 75% são administrativas e contabilísticas. Os outros 25% são escritos legais, religiosos, astronómicos e médicos, dicionários e receitas. Ainda, nestes 25% - e mais significativo, para os nossos propósitos - são as primeiras e mais antigas das literaturas do mundo. Incluem hinos, lamentos, descrições de actividades dos deuses e histórias quase épicas. Os trabalhos poéticos existentes incluem dois poemas de Enmerker, dois poemas de Lugulbanda e um ciclo de cinco poemas conhecido como Gilgamesh. Os ciclos Gilgamesh datam aproximadamente de 2700 a.C.. Tal como os tardios épicos gregos, a Ilíada e a Odisseia, o épico Gilgamesh foi provavelmente uma compilação de histórias díspares relacionadas, juntas e elaboradas por contadores de histórias e finalmente escritas após centenas de anos de actuações e transmissão oral. Gozava de grande popularidade por todo o Próximo Oriente e existem versões sumérias, hititas e hurritas.

A transição da comunicação oral para a escrita não foi universal e o seu desenvolvimento teve lugar em épocas diferentes, com sistemas diferentes, em culturas diversas e períodos diferentes. O segundo caso de desenvolvimento independente de escrita que se pode documentar é entre as sociedades de nativos americanos na América Central, provavelmente no sul do México desde aproximadamente 600 a. C. É possível que os modos de escrita de chineses, egípcios e da Ilha da Páscoa se possam ter desenvolvido independentemente. Quer isto seja o caso ou não, os linguistas concordam que todos os sistemas de escrita foram inspirados, ou descendem directamente dos sistemas sumérios ou centro-americanos.

Os primeiros povos letrados que desenvolveram a escrita, fizeram-no ao adaptarem e copiarem sistemas de escrita que encontravam. Por exemplo, na costa Norte da Síria, os escribas ugaritas semitas basearam-se nas formas da escrita cuneiforme suméria para escrever a linguagem hurrita. No Leste da Ásia, alguns estudiosos acreditam que foi no estado Shang na China central do Norte (cerca de 1500-1545 a.C.) que a primeira versão do sistema de escrita de caracteres chinês se desenvolveu (discute-se se originário da Mesopotâmia), que mais tarde influenciou o desenvolvimento dos sistemas de escrita usados na Coreia, Japão e Vietname. No subcontinente da Índia onde se desenvolveram mais de 200 escritas, todas derivam de uma fonte - a escrita Brahmi - ela própria originária de uma fonte semita (provavelmente aramaica) de c253-250 a.C. O sucesso de um sistema de escrita em particular não quer dizer superioridade mas adaptabilidade. Não é "a eficiência de um sistema de escrita que determina a sua longevidade e influência, mas sim o poder económico e o prestígio daqueles que o usam... Um poderoso sistema de escrita da sociedade - o alfabeto de consoantes - marcará a história, enquanto uma sociedade fraca desaparecerá".

Os historiadores dos primeiros sistemas de escrita argumentam que a escrita nasceu apenas quando e onde havia necessidade de um sistema de escrita, num contexto que fornecia as infra-estruturas sociais, económicas e humanas necessárias para ajudar os especialistas da linguagem escrita, como copistas, bibliotecários, professores, especialistas religiosos, poetas, e finalmente em alguns casos, dramaturgos e as companhias de actores/bailarinos que podiam fazer a apresentação de uma peça. Todas as sociedades que inventaram a escrita (Suméria, América Central, China, Egipto) ou foram precoces na criação dos seus próprios sistemas (Creta, Irão, Turquia, o Vale de Indus, as culturas Maia) "eram sociedades socialmente estratificadas, com instituições políticas complexas e centralizadas." Armazenavam os excedentes de comida crescentes dos camponeses que apoiavam estas instituições e especialistas.

A escrita nunca se desenvolveu em sociedades organizadas de caçadores-colectores, em bandos ou em tribos ou entre chefaturas mais sedentarizadas, porque não havia necessidade, instituições ou estruturas agrícolas necessárias para a apoiarem. Por exemplo, em muitas das ilhas do Pacífico, a escrita foi desnecessária durante séculos. Muitas sociedades do Pacífico nunca desenvolveram estados elaborados porque não havia necessidade de um sistema complexo de registo.

 

Philip B. Zarrilli

Traditore, Pedro Marques




Pedro Marques @ 19:42

Ter, 18/08/09

Para a maior parte de nós o amor é, em grande parte, a partilha de uma série de prestações de hipotecas, de noites enrolados no sofá à frente do vídeo, ou talvez de uma noite num hotel na ocasião de um aniversário. Mas Cristina Nehring tem uma ideia diferente. A sua polémica ardente no livro Em Defesa do Amor sugere uma visão mais exigente e escura do amor. Não é, tem de se dizer desde já, um livro sem ambições: o subtítulo é Exigindo romance para o século vinte e um, Nehring não fala da vida romântica, mas sobre uma visão da paixão mais vital e difícil que ela acredita que se perdeu.

"Temos sido muito pragmáticos e básicos sobre as nossas vidas eróticas durante muito tempo,” escreve ela, e numa análise de personagens inventadas e reais desde A Esposa de Bath a Frida Kahlo, diverte-se com casos amorosos que não estão de acordo com as nossas histórias mais triviais. O resultado da pesquisa literária e histórica de Nehring é uma comemoração das ligações mais loucas e destrambelhadas. As suas heroínas e heróis, como o jovem Werther, que se suicida; ou tentam morrer, como Mary Wollstonecraft, que se atira de uma ponte; ou sofrem, como Abelardo e Heloísa, um dos quais é castrado e a outra acaba num convento. Mesmo assim Nehring admira estes homens e mulheres vistosos pela força criativa das suas relações, pela capacidade de viverem fora das linhas, pela ferocidade dos seus sentimentos. Ela vê os objectivos dos casamentos modernos, a segurança e o conforto como limitados e tristes, e cita, concordando, a declaração de Heloísa a Abelardo: “ ‘Eu não procurei uma ligação matrimonial,’ disse ela de repente, ‘Eu nunca procurei nada em ti senão a tua pessoa’.”

Nos seus capítulos mais interessantes e provocantes, Nehring justifica o valor do sofrimento, a importância do fracasso. A nossa ideia de um casamento com final feliz é demasiado pacífica e domesticada para ela. Nós desejamos aquilo que ela chama uma “felicidade esforçadamente exibicionista” – pensem nas fotos de família no Facebook – em vez disso devemos concentrar-nos na intensidade e cumprimento da emoção. Ela escreve sobre Margaret Fuller: “Os fracassos de Fuller são muitas vezes mais sumptuosos do que os sucessos dos outros. E talvez seja isso que devamos admitir sobre o fracasso: pode ser muito mais sumptuoso que o sucesso... algures no nosso inconsciente colectivo sabemos – mesmo agora – que ter fracassado é ter vivido.”

Nehring vê na grandiosidade do sentimento uma espécie de heroísmo, mesmo que a relação não tenha uma forma convencional ou prossiga de uma forma não convencional. Para Nehring, o verdadeiro fracasso é vaguear numa relação aborrecida, e nós sentimos isso, passar anos preciosos da nossa vida num casamento que não é estimulante nem satisfatório, viver com cautela, responsavelmente. A força do sentimento é redimida pela chama da paixão ainda que não acabe de uma maneira feliz? A felicidade é um objectivo demasiado modesto e fraco?

Mais tarde, Nehring interroga a nossa inabalável insistência em relações equilibradas, saudáveis, o nosso voluntarismo para condenar ligações impossíveis e condenadas. Ela argumenta que pode de facto ser um sinal de sanidade entrar numa relação turbulenta, exigente e não ortodoxa. Ela louva relações à distância, relações dolorosas, relações com homens evasivos, relações a que a cultura terapêutica se opõe inexoravelmente. Ela pergunta, “Poderá dar-se o caso de a escolha de um objecto amoroso exigente mostrar sinais de força e de grandes recursos em vez de mostrar insegurança e problemas psicológicos como muitas vezes ouvimos?”

(...)

Katie Roiphe lecciona na Universidade de Nova Iorque. 19 de Junho de 2009




Pedro Marques @ 22:09

Ter, 10/02/09

O indivíduo que vive sob um regime capitalista, no interior deste regime, tem muita dificuldade para compreender que a guerra não é necessária, pois ela o é, sob o regime capitalista, cujos interesses serve. Este sistema fundamenta-se na guerra de todos contra todos, dos grandes contra os grandes, dos pequenos contra os pequenos, dos grandes contra os pequenos. Seria preciso já ter reconhecido que o capitalismo é uma desgraça em si, para discernir que a guerra e as desgraças que arrasta consigo são más - isto é inúteis.

 

Bertolt Brecht




Pedro Marques @ 00:38

Seg, 03/11/08

Khaled Hosseini é o nome do escritor afegão autor de O Menino de Kabul (The Kite Runner), livro publicado em 2003. Um livro sobre a amizade de dois meninos que crescem em Kabul nos anos 70. A invasão da então URSS e a posterior guerra obrigam Amir (de origem Pashtun) a emigrar para os EUA e deixar o seu grande amigo Hassan (de origem Hazara) para trás. No Afeganistão de então o país estava dividido por estas duas facções que dividiam o país. Quando vinte e cinco anos depois Amir, então escritor, volta para cumprir o desejo de um amigo de família as revelações de que será testemunha irão operar uma revolução na sua vida de adulto.

É um livro brilhante sobre a amizade, os erros e a sua redenção, sobre o amor e o ódio, a passagem inexorável do tempo e a saudade da terra natal. Escrita numa prosa simples e pungente, onde a emoção convive com a poesia mais pura e onde o contador de histórias revela toda a sua poderosa capacidade para evocar emoções e provocar o leitor.

Há algum tempo que não lia um livro tão poderoso e fascinante. As voltas da narrativa são sempre surpreendentes e quase sempre brutais.

Vale a pena ler este belo livro que tem ainda a seu favor o facto de ter como centro da sua acção um país e uma região afectadas pela desumanidade da guerra. Facto que contrasta agudamente com a humanidade despudorada com que retrata as personagens e lhes dá dignidade.

A não perder.




Pedro Marques @ 02:17

Sab, 28/06/08

Criando este elemento imaginário que é o "sexo", o dispositivo de sexualidade suscitou um dos seus mais essenciais princípios internos de funcionamento: o desejo de sexo - desejo de o ter, desejo de a ele aceder, de o descobrir, de o libertar, de o articular em discurso, de o formular em verdade. Ele constituiu também o "sexo" como desejável. E é esta desejabilidade do sexo que fixa cada um de nós na injunção de o conhecer, de trazer à luz a sua lei e o seu poder; é esta desejabilidade que nos faz acreditar que afirmamos contra todo o poder os direitos do nosso sexo, quando, na realidade, ela nos amarra ao dispositivo de sexualidade que fez subir do fundo de nós próprios, como uma miragem em que julgamos reconhecer-nos, o negro esplendor do sexo.

Michel Foucault, A História da Sexualidade, vol. 1 - A vontade de Saber. Relógio d'Água. Trad. Pedro Tamen.



Pedro Marques @ 22:01

Seg, 21/04/08

O sonho, enorme e cinzento, pendente como os fios de uma teia, enredou-se à sua volta e abraçou-o avidamente. Ele gritou, mas em vez de sons, o que saiu dele foram estrelas. As estrelas subiram até atingirem a copa da teia e depois desapareceram rapidamente.

Philip K. Dick, O Profanador



Pedro Marques @ 17:46

Seg, 10/03/08

As Benevolentes de Jonathan Littell é um livro extraordinário, enigmático, poderoso, frio, sobre a humanidade e a desumanidade, a traição e a dedicação de Maximilian Aue, o protagonista da história, oficial da SS alemã em plena II Guerra Mundial. Jurista de profissão, os trabalhos de que se encarrega na frente da batalha na Ucrânia e depois mais tarde em Estalinegrado têm a ver com propaganda e o extermínio das populações que iam sendo sistematicamente dizimadas pelo exército alemão - cerca de 20 milhões de mortos só na União Soviética. O relato deste oficial homossexual, apaixonado incestuosamente pela irmã gémea, é exaustivo e pleno de pormenores de uma atrocidade desarmante, de uma frieza de cortar à faca, mas ao mesmo tempo de uma humanidade pungente. Apesar de estar às ordens de um regime hipócrita, vil e desprezível, como o regime nazi, este oficial conduz-nos pela guerra na frente Leste com a sensação asfixiante de que podíamos nós estar no lugar dele. A simplicidade com que relata a barbárie e o seu desapego em relação a elas questionam os nossos valores de estado e de liberdade individual. Os valores da nossa consciência que, como sabemos, são vilipendiados diariamente pelos outros.
As Benevolentes que dão título a este grosso livro são entidades mitológicas da antiguidade clássica, mais conhecidas por Erínias ou Euménides, que têm por missão castigar os crimes de sangue. As mesmas entidades assumem o nome quando são apaziguadas e cessam o ciclo de crimes de sangue como acontece na peça final da Oresteia de Ésquilo - As Euménides. Em certo sentido podemos ver este livro como uma Ilíada revisitada, exaustiva em pormenores ligados à realidade factual, efabulada por viagens oníricas - o sonho do tiro que Max leva durante o cerco de Estalinegrado e que o mobiliza para a Alemanha no final da guerra. Só que os deuses já não estão presentes. A Europa do século XX chafurda na guerra e tudo é vilmente humano. Inexorável - sem um único sonho.
Max Aue é, na altura do relato, um industrial dos tecidos, refugiado em França, que passa em retrospectiva a vida que levou desde que ingressou na SS até ao final da guerra com os russos a ocuparem Berlim. No fim do livro, depois de matar a mãe e o padrasto e o melhor amigo e ficar sozinho com os papéis que lhe possibilitarão fugir para a França, ele diz que as benevolentes encontraram finalmente o seu rasto. Ficamos sem saber se Max Aue é poupado pelas deusas porque o ciclo de sangue tem de chegar ao fim, se "sentia todo o peso do passado, da dor da vida e da memória inalterável, ficava só (...) com o tempo e a tristeza e a dor da recordação, a crueldade da existência e da morte ainda por vir" e que esse seria o peso que ele teria de carregar até ao fim da sua vida, um peso só aliviado pelos relatos que ele faz para "esclarecer as coisas para mim mesmo e não para os que me lêem."
Seja como for, os momentos finais do livro deixam a sensação que o autor quis acabar o livro com uma redenção, um momento de alívio, de esperança e perdão (afinal aquilo que determina a nossa humanidade em pleno século XX e que começou no racionalismo da Grécia Antiga) que contrastam com a desumanidade e horror da guerra e do extermínio.
É certo que a nossa humanidade não está determinada de uma vez por todas, aquilo que é humano hoje, amanhã pode ser considerado obsoleto e vice-versa, mas há valores sobre os quais assentamos as nossas vidas que não podem ser postos em causa sob pena de sermos considerados menos que pessoas...