Não posso mesmo deixar de postar este texto do Jorge Silva Melo para o jornal Público. São os anos que trabalhei nos Artistas Unidos, resumidos num texto que devia fazer pensar.
Apenas para aqueles que se atrevem a pensar o país (a cidade, o mundo, a civilização) para além dos mediatismos, futebóis, publicidades, concursos e ignorância.
As noites já caem cedo, os letreiros hão-de estar a acender, a estas horas, os cartazes são içados nas fachadas, a temporada começa. E o que resta da crítica ainda não corroeu a alegria do que fazemos. Para quem faz teatro, Setembro é sempre um mês de esperança, o mês feliz das marés vivas e das estreias.
Passei Agosto a olhar para as programações dos teatros desta Europa. E vejo: Patrice Chéreau vai dirigir Sonho de Outono de Jon Fosse em Paris (no Museu do Louvre!) - peça de que fizemos a estreia mundial em 2000 numa cave da Capital - e Sou o Vento (que lemos no São Luiz, aquando da visita dos Reis da Noruega) no Young Vic, em Londres, em versão de Simon Stephens (autor de quem estreámos há meses, e perante o responsável silêncio da "crítica especializada", o belo Precipício no Mar).
Nestes 10 anos (que são os da nossa amizade), Jon Fosse passou do desconhecido que connosco bebia cervejas no Bairro e atravessava o Tejo de cacilheiro, a Prémio Ibsen (é-lhe atribuído pelo rei a 10 de Setembro).
E assim tem sido com os autores com que nos cruzámos na Capital, aquele edifício que as autoridades municipais consideraram um perigo. Os prémios italianos de 2009 foram parar a espectáculos com textos de Jean-Luc Lagarce, Antonio Tarantino, Spiro Scimone - e, neste Festival de Veneza, o enorme Ascanio Celestini estreia a sua primeira longa-metragem. Em Paris, Dimitris Dimitriadis foi o autor do ano (no Odéon). O Prémio Max (espanhol), que em 2009 foi para Juan Mayorga, foi este ano para Benet i Jornet (que editámos e nunca fizemos). Os Presnyakov, Scimone e agora Paravidino são feitos na Comédie Française, David Harrower estreou uma peça dirigida por Peter Stein...
Gente que revelámos em Lisboa - e alguns Portugal fora.
E agora que ensaiamos no São Luiz Hedda de José Maria Vieira Mendes, desce a tristeza: o que vou fazer depois disto, na temporada 2010-11? Onde tenho um folheto, onde estão as datas, os contratos, as traduções a chegar, as primeiras versões a serem discutidas, distribuições a serem completadas? É o que o estão a fazer os da minha idade (62, e já ando mouco!) nas cidades por onde também vivi, é o que se faz nos teatros, ao dobrar o Verão.
Em Outubro, estrearíamos A Farsa da Rua W, a obra-prima de Enda Walsh (mas onde?), cujos ensaios tivemos que suspender quando, em 2008, nos puseram fora das Mónicas; e em Novembro repunha Acamarrados (mas onde?) do mesmo autor, para os mostrar em alternância, e fazer vir cá o Enda que gosta daqueles aventais de minhota que se vendem nos Restauradores. E em digressão faria Um Precipício no Mar de Simon Stephens (mas onde?). Para, em Fevereiro, estrear Um Homem Falido de David Lescot (mas onde?). E depois, em Lisboa e em digressão, este era o ano para fazermos (mas onde?) Sou O Vento de Jon Fosse, Últimas Palavras do Gorila Albino e O Rapaz da Última Fila de Juan Mayorga, uma pecita minha (sem nenhuma importância, não tenham medo) que congemino sobre Franz Lizst (é o centenário - e eu devo-lhe a Lola Montes), e queria tanto fazer o Design For Living de Noel Coward (mas onde?, onde?). E começar a trabalhar uma peça do Almeida Faria (mas onde?, onde?)
E pronto, são horas de ir para o ensaio, que bom, Hedda.
Com amaríssima alegria, aproveito cada minuto de ensaio, encanto-me com os meus lindíssimos actores - e gosto tanto. Mas cada ensaio que passa é menos um dia que tenho com eles.
Pois eu sei: só ensaiarei de novo lá para Dezembro de 2011 - e é ainda um "suponhamos".
Continuamos sem local onde apresentar o trabalho de dramaturgia contemporânea que arrancámos há onze anos, quando ninguém o fazia. Chamou-se A Capital, era no Bairro Alto, no prédio que frequentaram Taborda, Eça, Ramalho - e onde expôs Columbano. E entre 1999 e 2002, foi aí que estivemos no centro da actividade teatral europeia - e alguns anos à frente de capitais mais ricas. Santana Lopes mandou-a fechar a 29 de Agosto de 2002, faz hoje 8 anos tremendos.
Entretanto, na CML, no MC, na DGArtes é um ver passar gente, presidentes, directores, vereadores e urbanistas, secretários e assessores, tanta gente - e ninguém a mandou abrir. De vez em quando chamam-me para reuniões, dizem que me sente no sofá. E o tempo passa.
E eu aqui em casa a enviar mails de parabéns ao Jon, ao Fausto, ao Juan, ao Spiro, ao Dimitris, sem saber bem que lhes dizer (quando farei a peça que lhes disse que queria fazer? E onde? Que lhes dizer da última peça que me enviaram? Algum dia a lerei com "olhos práticos"?). E eu aqui em casa, a evitar actores de quem gosto tanto, pois não sei que lhes propor.
Em Outubro, espectador, lá irei a Londres, serão férias. E em Novembro, Roma.
Mas não irei visitar os meus amigos dos departamentos literários, nem os agentes, nem os gabinetes dos teatros, não. Nenhum deles acreditará que, oito anos depois da brutal expulsão de A Capital, nada se tenha passado em Lisboa. Nenhum deles acreditará que eu, que estive tão activo na "dramaturgia contemporânea", seja agora um encenador pré-aposentado, pondo o meu carimbo (de suposto Mestre) em textos mais ou menos clássicos, em teatros mais ou menos institucionais.
Ninguém acreditará que, em Lisboa, ninguém acreditou. E que ninguém quis aproveitar o esforço (enorme e pertinente) que, com saber, oferecíamos.
Eu devia perdoar-lhes, ah, pois era, pois "não sabem o que fazem". Mas não, não perdoo.
Pois tinha sido possível, meus senhores, tinha mesmo sido possível.
Artistas Unidos
Parece-me que a crítica em geral abandonou muitas das suas funções e esqueceu-se de uma coisa muito importante que era o prazer. Na crítica de teatro, não sinto nenhum prazer; sinto um dever moralista, mas não o entusiasmo da descoberta. Se não gostam, porque é que escrevem? Depois, sinto que há uma espécie de conluio com o poder que me parece muito grave. Há muitos críticos que fazem seis meses de crítica e vão para o ministério atribuir subsídios; seis meses de crítica e passam a adidos de imprensa das companhias de teatro... Acho que era muito importante fazer-se um código deontológico da profissão de crítico.
Jorge Silva Melo ao jornal I.