Aquele que abraça uma mulher é Adão. A mulher é Eva.
Tudo acontece pela primeira vez.
Vi uma coisa branca no céu. Dizem-me que é a lua, mas que posso eu fazer com uma palavra e uma mitologia.
As árvores metem-me um pouco de medo. São tão belas.
Os tranquilos animais aproximam-se para que eu lhes diga o seu nome.
Os livros da biblioteca não têm letras. Quando os abro irrompem.
Ao folhear o atlas projecto a forma de Samatra.
Aquele que acende um fósforo no escuro está a inventar o fogo.
No espelho há um outro que espreita.
Aquele que olha o mar vê a Inglaterra.
Aquele que profere um verso de Liliencron já entrou na batalha.
Sonhei Cartago e as legiões que devastaram Cartago.
Sonhei a espada e a balança.
Louvado seja o amor em que não há possuidor nem possuída, mas em que ambos se entregam.
Louvado seja o pesadelo, que nos revela que podemos criar o inferno.
Aquele que desce um rio desce o Ganges.
Aquele que contempla uma ampulheta vê a dissolução de um império.
Aquele que brinca com um punhal pressagia a morte de César.
Aquele que dorme é todos os homens.
No deserto vi a jovem Esfinge, que acabam de construir.
Não há nada tão antigo sob o sol.
Tudo acontece pela primeira vez, mas de maneira eterna.
Aquele que lê as minhas palavras está a inventá-las.
Jorge Luís Borges, Cifra (1981), Círculo de Leitores. Tradução de Fernando Pinto do Amaral.