Escrevo este manifesto para demonstrar que se podem realizar acções opostas, ao mesmo tempo, num único e fresco movimento. Sou contra a acção; e em relação à contradição conceptual, e à sua afirmação também, não sou contra nem a favor.


Pedro Marques @ 10:47

Ter, 22/05/07

Há uns tempos traduzi este discurso do Papa Bento XVI na Universidade de Ratisbona pela polémica que gerou. Queria saber aquilo que tanto tinha enfurecido os muçulmanos e descobri.


Fé, Razão e a Universidade: Memórias e Reflexões

Suas Eminências, Suas Magnificências, Suas Excelências,
Prezadas Senhoras e Senhores,
É uma experiência comovente para mim voltar à Universidade e poder discursar mais uma vez neste púlpito. Penso naqueles anos em que, depois de um período agradável em Freisinger Hochschule, comecei a dar aulas na Universidade de Bona. Foi em 1959, na altura da velha universidade feita de professores normais.
As várias cadeiras não tinham assistentes nem secretárias mas, em compensação, havia muito mais contacto directo com os estudantes e, em particular, entre os próprios professores.
Encontrávamo-nos antes e depois das aulas nas salas de professores. Havia uma troca saudável com historiadores, filósofos, filologistas e, naturalmente, entre as duas faculdades de teologia. Uma vez por semestre havia um dies academicus, quando professores de todas as faculdades apareciam diante dos estudantes de toda a universidade, tornando possível uma experiência genuína de universitas – algo que também vós, Magnificente Reitor, acabastes de referir – a experiência, por outras palavras, do facto de que, apesar das nossas especializações que às vezes tornavam difícil a comunicação com os outros, constituíamos um todo, que trabalhava em tudo com base numa racionalidade única com os seus vários aspectos e partilhava responsabilidades pelo uso correcto da razão – esta realidade tornou-se uma experiência vivida. A universidade também estava muito orgulhosa das suas duas faculdades de teologia. Era claro que, ao inquirir sobre a racionalidade da fé, elas também levavam a cabo um trabalho que era necessariamente parte do “todo” do universitas scientarium, mesmo que nem toda a gente pudesse partilhar a fé que os teólogos procuravam relacionar com o todo.
Este profundo sentimento de coerência dentro da universidade da razão não foi perturbado, mesmo quando se constatou que um colega disse que havia uma coisa estranha na nossa universidade: tinha duas faculdades dedicadas a algo que não existia: Deus. Que mesmo perante tal cepticismo radical continua a ser necessário e razoável levantar a questão de Deus através do uso da razão, e a fazê-lo no contexto da tradição da fé Cristã: isto, dentro da universidade como um todo, era aceite sem qualquer questão.
Lembrei-me de tudo isto recentemente, quando li a edição do Professor Theodore Khoury (Münster) de parte do diálogo que teve lugar – talvez em 1391 nos quartéis de Inverno, em Ancara – pelo imperador Bizantino Manuel II Paleólogo e um letrado Persa sobre o assunto da Cristandade e do Islão, e a verdade das duas religiões. Foi talvez o próprio imperador que registou este diálogo, durante o cerco de Constantinopla entre 1394 e 1402; e isto explica por que razão a sua argumentação é mais detalhada que a do seu interlocutor Persa. O diálogo fala em termos gerais sobre as estruturas da fé contidas na Bíblia e no Corão, e centra-se especialmente na imagem de Deus e do homem, embora volte repetidamente às relações entre – aquilo que se chamava então – as três “Leis” ou “regras da vida”: o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Corão. Não é minha intenção discutir esta questão no discurso de hoje; agora gostava apenas de referir um único ponto – em si mesmo bastante marginal a todo o diálogo – que, no contexto do assunto “fé e razão”, achei interessante e que pode servir como ponto de partida para as minhas reflexões sobre o assunto.


Na sétima conversa (διάλεξις - controvérsia) editada pelo Professor Khoury, o imperador toca no tema da guerra santa. O imperador devia saber que no surah 2, 256, se lê: “Não há compulsão na religião.”
De acordo com os especialistas, este surah é do primeiro período, quando Maomé ainda não tinha poder e estava sob ameaças. Mas, naturalmente, o imperador também sabia as instruções, desenvolvidas mais tarde e gravadas no Corão, no que dizia respeito à guerra santa. Sem ir aos pormenores, tais como a diferença de tratamento dada aos que possuem o “livro” e aos “infiéis”, ele dirige-se ao seu interlocutor com uma rudeza surpreendente acerca da questão central sobre a relação entre religião e violência em geral, dizendo: “Mostrai-me aquilo que Maomé trouxe de novo e só encontrareis coisas malvadas e desumanas, tal como a sua ordem de espalhar pela espada a fé que apregoava”.
O imperador, depois de se ter expressado de modo tão vigoroso, prosseguiu explicando em pormenor as razões por que espalhar a fé através da violência é algo irracional. A violência é incompatível com a natureza de Deus e a natureza da alma. “Deus”, diz ele, “não fica agradado com o sangue – e não agir racionalmente é contrário à natureza de Deus. A fé nasce da alma, não do corpo. Quem conduz as pessoas à fé precisa de possuir a faculdade de falar bem e de raciocinar com propriedade, sem violência e ameaças… Para convencer uma alma razoável, não é preciso um braço forte, ou armas de qualquer espécie, ou quaisquer outros meios de ameaçar uma pessoa com a morte…”
A afirmação definitiva nesta argumentação contra a conversão violenta é esta: não agir de acordo com a razão é contrário à natureza de Deus. O editor, Theodore Khoury, observa: para o imperador, um Bizantino moldado pela filosofia grega, esta afirmação é óbvia. Mas para um docente muçulmano, Deus é absolutamente transcendente. A sua vontade não figura em nenhuma das nossas categorias, nem mesmo na da racionalidade. Aqui Khoury cita o trabalho de um categorizado Islamista Francês R. Arnaldez, que afirma que Ibn Hazn foi ainda mais longe ao dizer que Deus não está ligado nem sequer à sua própria palavra, e que nada o obriga a nos revelar a verdade. Se fosse sua vontade, teríamos até de praticar a idolatria.
Nesta altura, tanto quanto diz respeito à compreensão de Deus e, por isso, à prática concreta da religião, estamos perante um dilema inquestionável. É a convicção de que agir irracionalmente contradiz a natureza de Deus uma ideia meramente grega, ou é sempre e intrinsecamente verdade?
Acho que podemos ver aqui uma profunda harmonia entre o que é grego no melhor sentido da palavra e a compreensão bíblica da fé em Deus. Modificando o primeiro verso do Livro do Génesis, o primeiro verso da Bíblia, João começou o prólogo do seu Evangelho com as palavras: “No princípio era o λόγος”. Foi esta a palavra usada pelo imperador: Deus age, σὺν λόγω, com logos. Logos significa tanto razão como palavra – uma razão criativa capaz de comunicar, tal como a razão. Por isso João disse a palavra definitiva na concepção bíblica de Deus, e nesta palavra todas as habituais linhas penosas e tortuosas da fé bíblica encontram o seu culminar e síntese. No princípio era o logos, e o logos era Deus, diz o Evangelista. O encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não aconteceu por acaso. A visão de São Paulo, que viu as estradas para a Ásia fechadas e num sonho viu um homem macedónio a implorar-lhe “Vem para a Macedónia e ajuda-nos!” – esta visão pode ser interpretada como uma “destilação” da necessidade intrínseca de reaproximação entre a fé Bíblica e a pesquisa grega.
De facto, esta reaproximação já decorria há algum tempo. O nome misterioso de Deus, revelado pelo arbusto a arder, um nome que separa este Deus de todas as outras divindades com os seus vários nomes e declara simplesmente “Eu sou”, fornece desde logo um desafio à noção de mito, com a qual a tentativa de Sócrates de subjugar e transcender o mito está em próxima analogia. No Antigo Testamento, o processo que começou com o arbusto em chamas atingiu uma nova maturidade no Exílio, quando o Deus de Israel, uma Israel agora privada da sua terra e veneração, foi proclamado o Deus do céu e da terra e descrito numa fórmula simples que ecoa as palavras sussurradas perto do arbusto em chamas: “Eu sou”. Esta nova compreensão de Deus é acompanhada por uma espécie de iluminação, que encontra crua expressão na troça dos deuses que são meramente trabalho de mãos humanas. Assim, apesar do conflito amargo com os soberanos helénicos que procuravam adaptá-la à força aos costumes e ao culto idólatra dos gregos, a fé bíblica, no período helénico, encontrou o melhor do pensamento grego a um nível mais profundo, resultando num enriquecimento mútuo especialmente evidente na sábia literatura tardia. Hoje sabemos que a tradução grega do Antigo Testamento produzida em Alexandria – a Septuaguinta – é mais do que uma simples (e nesse sentido, realmente, menos que satisfatória) tradução do texto em hebreu: é uma testemunha textual independente e passo importante e distinto na história da revelação, que proporcionou este encontro de um modo decisivo para o nascimento e propagação do Cristianismo. Houve um encontro profundo entre fé e razão, um encontro entre iluminação genuína e religião. A partir do próprio coração da fé Cristã e, ao mesmo tempo, do coração do pensamento grego agora ligado à fé, Manuel II pôde dizer: Não agir “com logos” é contrário à Natureza humana.
Com toda a honestidade, temos de referir que na Idade Média encontramos tendências na teologia que separariam esta síntese entre o espírito grego e o espírito cristão. Em contraste com o assim chamado intelectualismo de Agostinho e Tomás, surgiu com Duns Scotus um voluntarismo que, nos seus estádios mais desenvolvidos, conduziu à assumpção de que só podemos saber a voluntas ordinata de Deus. Para além disto estamos no domínio da liberdade de Deus, e por isso podemos fazer o oposto daquilo que ele fazia. Isto faz nascer posições que se aproximam claramente de Ibn Hazm e podem levar à imagem de um Deus caprichoso, que nem sequer está ligado à verdade e à bondade. A transcendência de Deus e de tudo o que tem a ver com ele é tão exaltada que a nossa razão, o nosso sentimento de verdade e de bem já não são um espelho real de Deus e as possibilidades mais profundas permanecem eternamente inalcançáveis e escondidas por trás das suas verdadeiras decisões. Como oposição a isto, a fé da Igreja insistiu sempre que entre nós e Deus, entre o seu Espírito Criador eterno e a nossa razão criadora existe uma verdadeira analogia, na qual – como o Quarto Concílio Luterano afirmou em 1215 – a dissemelhança permanece infinitamente maior que a semelhança, contudo não até ao ponto de abolir a analogia e a sua linguagem. Deus não se torna mais divino quando o afastamos de nós através de um voluntarismo puro e impenetrável; pelo contrário, o verdadeiro Deus divino é o Deus que se revela como logos e, como logos, agiu e continua a agir com amor por nós. É claro, o amor, como São Paulo diz, “transcende” o conhecimento e é por isso capaz de conter mais do que o próprio pensamento; apesar de tudo continua a ser o amor de Deus que é Logos. Como consequência, a adoração Cristã é, mais uma vez para citar Paulo – “λογικη λατρεία”, adoração em harmonia com o Mundo eterno e a nossa razão.
Esta íntima reaproximação entre a fé bíblica e a pesquisa filosófica grega foi um acontecimento de importância decisiva não apenas do ponto de vista da história das religiões, mas também do ponto de vista da história mundial – é um acontecimento que nos diz respeito ainda hoje em dia. Considerando esta convergência, não é surpreendente que a Cristandade, apesar das suas origens e de alguns desenvolvimentos significativos no Leste, tomou finalmente o seu carácter historicamente decisivo na Europa. Podemos exprimir isto ao contrário: esta convergência, com a adição posterior da herança Romana, criou a Europa e permanece a fundação daquilo que pode ser chamado Europa. A tese de que a criticamente purificada herança grega é parte integrante da fé Cristã tem sido oposta a uma posição de de-helenização da Cristandade – uma posição que tem dominado cada vez mais as discussões teológicas desde o começo da era moderna. Com mais atenção, podem ser observadas três etapas no processo de de-helenização: embora interligadas, são claramente distintas umas das outras nas suas motivações e objectivos.
A de-helenização nasce em primeiro lugar ligada aos postulados da Reforma do século dezasseis. Ao olhar para a tradição da teologia escolástica, os reformadores viam-se confrontados com um sistema de fé totalmente condicionado pela filosofia, isto quer dizer uma articulação da fé baseada num sistema estranho do pensamento. Como resultado disso, a fé nunca mais apareceu como Palavra histórica viva mas como elemento de um sistema filosófico que abafava tudo o resto.
O princípio sola scriptura, por outro lado, procurava alcançar a fé na sua forma pura e primordial, tal como se podia ler na Palavra bíblica. As metafísicas apareceram como premissa que derivava de outra forma, na qual a fé devia ser libertada de maneira a que se tornasse mais ela própria. Quando Kant afirmou que tinha parar de pensar para dar espaço à fé, radicalizou este modo de pensar de um modo que os reformadores não podiam antever. Por isso ligou a fé exclusivamente à razão prática, negando-lhe o acesso à realidade como um todo. A teologia liberal dos séculos dezanove e vinte trouxe o segundo período do processo de de-helenização, sendo Adolf von Harnack o seu extraordinário representante.
Quando eu era estudante, e nos primeiros anos de docência, este modo de pensar era muito influente na teologia Católica. Tinha como ponto de partida a distinção que Pascal fazia entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacob.
No meu discurso inaugural em Bona, em 1959, tentei debater este assunto, e não tenciono repetir aqui o que disse nessa ocasião, mas gostava de descrever pelo menos brevemente aquilo que era novo neste segundo período de de-helenização. A ideia central de Harnack era a de voltar simplesmente a Jesus como homem e à sua mensagem simples, que estava por baixo dos acrescentos da teologia e mesmo da helenização: esta mensagem simples era vista como o culminar do desenvolvimento religioso da humanidade. Dizia-se que Jesus tinha posto fim à idolatria em detrimento da moralidade. No final era visto como o pai de uma mensagem moral humanitária. Fundamentalmente, o objectivo de Harnack era harmonizar de novo a Cristandade com a razão moral, libertando-a, por assim dizer, de elementos aparentemente filosóficos e teológicos, tais como a fé na divinização de Cristo e na trindade de Deus. Neste sentido, a exegese histórico-crítica do Novo Testamento, segundo a opinião dele, restituiu à teologia o seu lugar na universidade: a teologia, para Harnack, é algo essencialmente histórico e por isso estritamente científico. Aquilo que consegue dizer criticamente sobre Jesus é, por assim dizer, uma expressão da razão prática e, consequentemente, pode ocupar o seu lugar na universidade. Por trás deste pensamento está a auto-limitação da razão, expressa de modo clássico nas “Críticas” de Kant, e entretanto ainda mais radicalizada pelo impacto das ciências naturais.
Este conceito moderno da razão é baseado, para sermos breves, numa mistura de Platonismo (Cartesianismo) e empirismo, uma síntese confirmada pelo sucesso da tecnologia. Por um lado, pressupõe a estrutura matemática da matéria, a sua racionalidade intrínseca, o que torna possível compreender agora como a matéria funciona e usá-la eficientemente: esta premissa básica é, por assim dizer, o elemento Platónico na compreensão moderna da natureza. Por outro lado, há a capacidade da natureza poder ser explorada para nosso benefício, e aqui só a possibilidade de verificação ou de falsificação através da experimentação pode conter uma certeza final. O peso entre os dois pólos pode, dependendo das circunstâncias, mudar de um lado para o outro. Exactamente quando um pensador positivista como J. Monod se declarou um convincente Platonista/Cartesiano.
Isto pressupõe dois princípios que são fundamentais para o assunto que abordámos. Primeiro, só aquelas certezas que resultam da interacção entre elementos matemáticos e empíricos podem ser consideradas científicas. Tudo o que seja ciência tem de ser avaliado segundo este critério. Daí as ciências humanas como a história, a psicologia, a sociologia e a filosofia, tentarem manter-se dentro destes cânones de cientificidade. O segundo ponto – importante para as nossas reflexões –, é que pela sua própria natureza este método exclui a questão de Deus, tornando-a uma questão não-científica ou pré-científica.
Consequentemente, estamos perante uma redução do raio de alcance da ciência e da razão, que precisa de ser questionada.
Voltarei a este problema mais tarde. Entretanto, deve dizer-se que deste ponto de vista qualquer tentativa para sustentar que a teologia é “científica” acabaria por reduzir a Cristandade a um mero fragmento da sua antiga essência. Mas temos de dizer mais: se a ciência como um todo é isto a apenas isto, então é o homem que fica reduzido, pois as questões especificamente humanas da origem e do destino, as questões levantadas pela religião e as várias éticas, não têm então lugar dentro da esfera de acção da razão colectiva definida pela “ciência”, assim percebida, e devem ser relegadas para o plano do subjectivo. A pessoa decide então, com base nas suas experiências, aquilo que considera sustentável em termos de religião, e a “consciência” subjectiva torna-se o único árbitro daquilo que é ético. Deste modo, contudo, a ética e a religião perdem o poder de criar comunidades tornando-se num assunto totalmente pessoal. Este estado de coisas é perigoso para a humanidade, como podemos ver pelas patologias de distúrbio da religião e da razão que irrompem necessariamente quando a razão é tão reduzida que as questões de religião e ética já não lhe dizem respeito. As tentativas de construção de uma ética a partir das regras da evolução ou da psicologia ou sociologia, acabam por ser pura e simplesmente inadequadas.
Há bocado tirei conclusões sobre aonde tudo isto nos conduziu, devo referir-me brevemente ao terceiro período de de-helenização, que decorre neste momento. À luz da nossa experiência de pluralismo cultural, diz-se muitas vezes que a junção ao helenismo nos primórdios da Igreja foi uma junção de culturas que preferia não se ligar a outras culturas. Estas dizem que podem voltar à mensagem simples do Novo Testamento antes dessa junção de culturas, de modo a fazerem eles próprios uma junção de culturas segundo os seus próprios meios. Esta tese não é só falsa; é grosseira e imprecisa. O Novo Testamento foi escrito em grego e carrega consigo a marca do espírito grego, que atingia a sua maturidade à medida que o Antigo Testamento se desenvolvia. É verdade, há elementos na evolução da Igreja dos primórdios que não devem ser integrados noutras culturas. Contudo, as decisões fundamentais tomadas sobre a relação entre fé e o uso da razão humana fazem parte da sua própria fé; são desenvolvimentos em consonância com a própria natureza da fé.
E chego à minha conclusão. Esta tentativa de criticar, com umas pinceladas ao acaso, a razão moderna a partir de dentro não tem nada a ver com uma tentativa de retardar o relógio até ao tempo antes do Esclarecimento e rejeitar os ensinamentos da igreja moderna. Os aspectos positivos da modernidade têm de ser apreendidos sem reservas: estamos todos muito agradecidos pelas maravilhosas possibilidades que isso abriu à humanidade e ao progresso da humanidade, e que nos foi oferecido. O ethos científico é – ainda mais – como vós mesmo referistes Magnificente Reitor –, a necessidade de se ser obediente à verdade, e, essa atitude pertence às decisões essenciais do espírito Cristão. A intenção aqui não é fazer censura ou crítica negativa, mas abrir o nosso conceito de razão e as suas aplicações. Enquanto nos congratulamos com as possibilidades abertas à humanidade, também vemos os perigos que nascem dessas possibilidades e temos de nos perguntar como os podemos ultrapassar Só o conseguiremos fazer quando a fé e a razão se juntarem num novo caminho, se ultrapassarmos as nossas auto-impostas limitações à razão e àquilo que é empiricamente verificável, e se mais uma vez revelarmos os seus vastos horizontes. Neste sentido a teologia pertence por direito próprio à universidade e está dentro do diálogo alargado de ciências, e não é apenas uma disciplina histórica das ciências humanas, mas exactamente com a teologia, uma indagação da racionalização da fé.
Só assim nos podemos tornar capazes de estabelecer esse diálogo genuíno de culturas e religiões de que tanto precisamos hoje em dia. No mundo Ocidental sustém-se abrangentemente que só a razão positivista e as formas de filosofia baseadas nela são universalmente válidas. Mas as profundas culturas religiosas vêem esta exclusão do divino da universalidade da razão como um ataque às suas convicções mais profundas. Uma razão que é surda ao divino e relega a religião para o domínio das subculturas é incapaz de entrar no diálogo de culturas. Ao mesmo tempo, e como já tentei demonstrar, a razão científica moderna com o seu elemento intrinsecamente Platónico carrega dentro de si própria uma pergunta que aponta para uma coisa maior e mais além das possibilidades da sua metodologia. A razão científica moderna tem de aceitar rapidamente as estruturas racionais da natureza tal como ela se nos apresenta, onde a sua metodologia tem de ser baseada. Mas o porquê de tudo isto ser assim tem de guardado pelas ciências naturais e por outros modos e perspectivas de pensamento – pela filosofia e pela teologia. Para a filosofia e, na obstante de um modo diferente, para a teologia, ouvir as grandes experiências e visões das tradições religiosas da humanidade, e em particular das da fé Cristã, é uma fonte de conhecimento, e ignorá-lo seria uma restrição inaceitável ao nosso ouvir e responder. Aqui lembro-me de uma coisa que Sócrates disse a Fédon. Nas suas primeiras conversas, haviam sido levantadas muitas opiniões filosóficas falsas, e Sócrates disse: “Compreender-se-ia facilmente que alguém pudesse ficar tão desanimado com todas aquelas noções falsas e desprezasse a escarnecesse até ao fim da vida todas as conversas sobre a criação – mas desta maneira seria privado da verdade da existência e sofreria uma grande perda”. O Ocidente foi ameaçado por esta aversão às questões que correm por baixo da razão, e por isso só poderá sofrer muito. Coragem de abraçar toda a razão, e não a negação do seu engrandecimento – é nesta maneira de pensar que a fé bíblica entra nos debates dos nossos tempos. “Não agir razoavelmente, não agir com logos, é contrário à natureza de Deus”, disse Manuel II, de acordo com a sua concepção Cristã de Deus, em resposta ao seu interlocutor persa. É a este grande logos, a este bafo da razão, que convidamos os nossos companheiros para um diálogo de culturas. Redescobrir isso constantemente é a grande tarefa da universidade.

The Holy Father intends to supply a subsequent version of this text, complete with footnotes. The present text must therefore be considered provisional.
O mesmo digo eu da tradução.