A INTERNACIONAL SITUACIONISTA E FRANK ZAPPA
O escritor que falou mais recentemente sobre o assunto da Internacional Situacionista, em relação com a música rock, foi Greil Marcus na sua arqueologia do substrato situacionista do punk – Lipstick Traces. Marcus analisa cuidadosamente as ideias conflituosas dos surrealistas, letristas e situacionistas com um tom de maravilha jovial, não recorrendo nunca à opinião ou à polémica. Ele encontra maneira de tornar estas agressivas e eletrizantes ideias espinhosas – como só um americano o podia fazer – (desenvolvidas de modo concreto, tal como Adorno descreveu a arte moderna – “desagradável no sentido de bem de consumo”) em pequenas migalhas douradas de consumo. É uma boa leitura. Apesar deste regresso, que se reflete no uso da palavra “situacionista” por toda a imprensa rock, a teoria foi originalmente explosiva e estruturava uma crítica que falava de arte e política num só fôlego. Não foi só o punk e Attali – todas as melhores ideias da crítica cultural da nova história de arte (Tim Clark era membro da ala britânica) até à literatura de vanguarda (Jeremy Prynne, Iain Sinclair), foram abandonadas pelas suas teses (só os excrementos de camelo têm mais aplicações). Uma indicação poderosa de que só os conceitos marxistas são capazes de transportar o bacilo da revolução.
No vácuo aberto pelo momento revolucionário do Maio de 1968, a IS não vingou porque fosse extremista, niilista e fria (embora o fosse), ou porque os membros escrevessem palavras de ordem nas gravatas (embora o fizessem), mas porque fazia uma análise marxista que não tinha qualquer relação com o stalinismo tanto do Partido Comunista como dos maoístas. Isto é esquecido. Não conseguiu influenciar os trabalhadores grevistas e os estudantes ocupantes e afastá-los da liderança do PC e da esquerda reformista, que começaram a devolver a revolução a De Gaulle e à polícia de choque. Não aprendeu de Lenine a necessidade de construir um partido revolucionário enraizado na classe trabalhadora: falhou. E isto também é esquecido.
Contudo, ao contrário dos tristes grupinhos de “seguidores situacionistas” que deixam críticas azedas contra tudo a apodrecer em várias livrarias de esquerda, os IS não eram anarquistas ou indivíduos românticos. Eles compreendiam a natureza do estado e a importância dos concelhos de trabalhadores; tinham uma visão realista do equilíbrio das forças de classe. Ao contrário de Sartre, viam através do terceiro mundismo de Fidel Castro e Mao; ao contrário das Brigadas Vermelhas opunham-se ao terrorismo porque não conduzia à atividade de massas; ao contrário do Partido Comunista viram a necessidade de uma especial unidade entre trabalhadores e estudantes. Por isso, as opiniões deles sobre Zappa merecem ser registadas. Em 1967, Raoul Vaneigem dizia o seguinte:
A única maneira de fazer um breve afloramento estético é atentarmos momentaneamente no espetáculo da decomposição artística: David Hockney, Frank Zappa, Andy Warhol, Arte Pop e Reggae podem ser comprados aleatoriamente em cadeias de lojas. Falar de um trabalho artístico duradouro, seria como dissertar sobre os valores eternos do petróleo.
A ideia do trabalho artístico “duradouro” revela um esteticismo incaracterístico, embora o modo como o livro de Vaneigem se deixa enfeitiçar por encantamentos puristas – repetidos ad nauseam – mostre realmente uma tendência idealista. A lista de nomes exibe a crueza da ênfase que a IS dá ao consumo (uma crueza que o pós-modernismo repete, apesar de possuir uma visão diferente). O crescimento dos anos 50 foi duro para os revolucionários: o capitalismo parecia dar tudo o que prometera. A crítica situacionista ao consumo – palavras de ordem que afirmavam que qualquer coisa que pudesse ser comprada não valia a pena, a completa aversão ao mundo mediático das famílias felizes – era um adeus definitivamente irónico aos anos 50, que depois seriam muito espoliados: desde as revistas de arte “radicais” como a Re/Search até à Igreja do Subgénio, os Devo e a auto-publicidade (o chique retrógrado dos anos 50 nos recentes anúncios de Brylcreem, por exemplo). Em Lancaster, na Califórnia, Captain Beefheart e Frank Zappa também esboçavam contra-medidas ao mundo conformista dos anúncios do pós-guerra.
Contudo, embora a crítica ao consumo signifique que mesmo uma economia em alta não nos deixa contentes, também significa que o alvo é sempre o mesmo. O cinismo de Vaneigem torna-se banal e intermitente. A possibilidade de se comprar reggae nas lojas não é aleatória, depende de uma variedade de factores: o grau de racismo na indústria discográfica, a presença de índios do oeste indígenas na área, o seu moral, o alcance da sua cultura e por aí adiante. Ao rejeitar o reggae e Andy Warhol, Vaneigem esquece que a música também pode ser o sangue da comunidade, a transmissão de notícias, conforto, fonte de força e resistência. Claro, a única maneira de distinguir entre consumidores diferentes é olhar para a sua relação com os meios de produção, o que significa olhar para eles como trabalhadores e não como consumidores. A IS só desenvolveu tal foco na classe trabalhadora depois da greve geral de 1968 ter começado. Apesar das suas muito-elogiadas “confraternizações” (partilhar uma garrafa de vinho com alguns grevistas à frente de um fotógrafo), era então muito tarde para as ideias revolucionárias da IS influenciarem o curso da luta.
O anti-consumismo de Vaneigem é, não obstante, preferível à celebração pós-modernista da “multiplicidade do baralha e torna a dar” do mercado, que de alguma maneira esquece a solvibilidade necessária para entrar no novo jardim do Éden. A IS gostava de fomentar o brilho especial que o capitalismo precisa para competir no mercado e depois concluir que se pode conseguir isso sem comprar nada. Como estratégia é bom, para pessoas envolvidas na criação de imagens de publicidade, confia no crescimento económico rápido, onde pode passar por corrente subversiva. Do mesmo modo, o punk achou que podia tomar momentaneamente a dianteira no ajustamento que o negócio do rock do final dos anos 70 conheceu, ao pegar fogo às figuras de palha do idealismo dos anos 60. Mas tanto a IS como o punk confiam na onda necessária ao desenvolvimento do capitalismo. Enquanto a explosão do rock dos anos 60 se estilhaçava no rock corporativo e disco dos anos 70 e o punk no domínio da inanidade MTV dos anos 80, parece que não se trata do simples assunto de encher as lojas com “substitutos” da revolução. Numa recessão, a retórica da IS parece desesperadamente deslocada: a verdadeira ameaça é o consumo em torrente sem quaisquer respostas críticas. Não há espaço para a crítica se expressar.
Vaneigem ataca o inimigo que conhece: os fornecedores de arte elevada que comercializam a vanguarda, arte que é precisamente projetada para resistir a tal mercado. Os anos 50 e 60 foram testemunhas de uma torrente herege de ideias anti-arte, da qual as artes visuais ainda não recuperaram. Dessas ideias hereges, a IS era a mais pura, a mais violenta, a mais engraçada e a melhor. Elevaram a um novo nível a crença de Adorno no impermutável.
Enquanto que no mundo real todos os particulares são fungosos, a arte protesta contra esses fungos ao pegar em imagens daquilo que a realidade devia ser se se emancipasse das normas de identificação impostas. Pelo mesmo princípio, a arte – a imago do impermutável – tende para a ideologia porque nos faz acreditar que há coisas no mundo real que não são para troca. No interesse do impermutável, a arte deve criar uma consciência crítica em relação ao mundo das coisas permutáveis.
Contudo, tal como os julgamentos de Adorno em relação à música radiofónica, a IS falou a partir da posição de arte elevada burguesa: só via o mercado de massas como degradação da singularidade do objeto artístico, vilipendiando implacavelmente os artistas que espalhavam produtos degradantes. Tornou-se um comité internacional cão-de-guarda, prevenindo o aproveitamento económico da anti-arte: se alguém em Roma estivesse a vender telas a metro como crítica à maneira como os expressionistas abstratos transformavam o “sofrimento” em dinheiro, a IS demoveria qualquer pessoa que tentasse fazer a mesma proeza noutro lado qualquer. Tais ideias subversivas têm uma enorme ressonância porque a ideia de arte irradia sempre o todo da sociedade, mas sem consciência de classe começam a reproduzir um desdém aristocrático pelo mercado – “Compraste numa loja? Oh, que coisa horrível.” A ideia da IS denunciar um “rasta” por ter comprado um disco de Big Youth é manifestamente absurda.
As ideias de Adorno funcionam melhor em estreita associação dialética com as de Walter Benjamin. Juntamente com a insistência de Adorno de que o trabalho artístico não pode abraçar o mercado e sobreviver, precisamos da visão de Benjamin e do novo materialismo no público de massas, que já não é mitificada pela singularidade do trabalho artístico, a “aura” (em si mesma uma versão secular do mistério religioso): o público de filmes de terror fala tecnicamente de como a tensão é criada; as considerações práticas sobre a profundidade do som grave num altifalante de doze polegadas ou num cd caseiro. Ao juntar Zappa, reggae, Warhol e Hockney que meramente conduzem “o espetáculo da decomposição”, Vaneigem ecoa Adorno ao mais alto nível, alheado do modo como a luta de classes se manifesta na música: da arena comercial como campo de batalha, uma guerra agitada por músicos, companhias discográficas e público sobre o dinheiro e o valor-prático. Essa merda tem groove? É uma pergunta materialista nunca formulada por nenhum dos tediosos debates sobre Morrisey ou Madonna como ícones do pop. Para aborrecimento dos jornalistas pop que reduzem tudo à sua conversa moralista, há valor-prático na música. Vaneigem fica tão ofendido com o espetáculo que para ele é tudo merda comercial, um monte de mercadorias sem sentido, oposto às suas rretóricas epetitivas da “vida vivida” e da “imaginação que tudo conquista”. Tais frases tornam-se meros encantamentos puristas do intruso profissional. Vaneigem falha a compreensão de que um disco de James Brown é uma coisa pessoal.
É um pouco como o argumento do pós-modernismo. Ao se opor ao regresso às velhas formas da música clássica – orquestras sinfónicas, tonalidade – o modernista é acusado de inconsistência ao gostar, por exemplo, de David Murray e da sua síntese de free jazz e swing em 1980. De facto, a acusação de inconsistência é originária de um idealismo similar ao de Vaneigem: pensar em abstrações que obscurecem factos sociais. O retorno à tonalidade na música clássica foi projetado para fazer recuar as descobertas feitas em Darmstadt nos anos 50 e 60, descobertas que não podiam ser discutidas por análises musicais escolásticas (daí o prestígio de Stockhausen, Boulez e Berio na academia) mas que alienavam os consumidores (sala vazias). Contudo, grande parte do argumento para tornar a música “mais acessível” é baseada num populismo demagógico (“multiculturalismo versus elitismo serialista”) que, de facto é favorecido pelo uso que a classe média faz da música clássica – cimento fortalecedor da identidade social, um sonho da ordem aristocrática tardia e do primitivo heroísmo burguês que só agora pode ser reavaliado como “kitsch”. A nova tonalidade adopta o irracionalismo em vez de enfrentar as consequências da forma (o que explica o reencontrado respeito pela religião por parte dos seus aderentes).
A análise material, por outro lado, não julga a arte por oposição a abstrações imutáveis, relaciona a arte com o seu papel histórico. O blues, o ragtime e o swing são invenções de pessoas oprimidas, formas adversas da mestria burguesa. A verdade da música pode estar em estreita ligação com a manutenção de especificidades étnicas que lutam contra a homogeneização académica e comercial e não seguir uma necessária evolução. Julgamentos abstratos sobre os “avanços” e os “recuos” (por exemplo, condenar John Lee Hooker de ser reacionário por ainda tocar blues) são inapropriados. O uso que o músico negro faz do blues não é o mesmo que um músico clássico faz da sonata. Da mesma maneira que falar das “raízes” de um compositor branco europeu, adoptando o calão nacionalista negro, contém uma corrupção racista (mesmo se o próprio W.E.B. Du Bois tenha tirado a sua ideia de orgulho negro das tradições filosóficas alemãs que alimentaram a teoria racial). Como Lenine mostrava na sua discussão sobre nacionalismo, uma ideia pode ter diferentes consequências políticas, dependendo do papel global (imperialista ou colonizado) da nação em questão. A crítica idealista, que julga as coisas de acordo com uma disposição neutra de ideias abstratas (ex. “consumo” versus “não consumo”), provoca normalmente asneiras desastrosas.
O sucesso do feminismo nos estudos culturais tem conduzido aos termos “sexista” e “não sexista” substituindo as categorias morais de “melhoramento” ou “corrupção” usadas tradicionalmente por Matthew Arnold e F.R.Leavis. Isto parece basear-se em distinções estéticas em vez de conceitos morais. Contudo, quando usado fora de uma compreensão concreta da forma musical, os termos constroem meramente um outro idealismo, suscetível – como todos os idealismos – de contradições gritantes. Quando Chris Blackford deseja aplaudir os Van Der Graaf Generator na publicação musical radical Rubberneck, ele argumenta que a voz de primeira classe de Peter Hammill é “imaculada de uma misoginia derivada dos blues”. Susan McClary, por outro lado, diz que “não há equivalentes brancos de Bessie Smith ou Aretha Franklin – mulheres que cantam poderosamente o espiritual e o erótico sem a estrutura misógina e punitiva da cultura europeia. “Tanto Blackford como McClary justificam os gostos com referências a um sistema moral que transcende tanto a arte como a sociedade com que lidam; e contradizem-se completamente. Apesar dos dois serem membros do campo “anti-sexista”, o típico desprezo “anti-rockeiro” dos ingleses e de Blackford pelos blues entra em contradição com McClary que escreve na América, onde os estudos sobre negros forçaram a um certo respeito crítico pela forma.
As dialéticas negativas, por outro lado, veem as formas como matérias sedimentadas: “analisá-las é o mesmo que nos tornarmos conscientes da história inerente armazenada nelas.” Em vez de reduzir os trabalhos artísticos a meros exemplos de ideias abstratas, traça a sua proveniência material. Claro, isto significa que o “julgamento” crítico deve, em última instância, relacionar-se com uma visão política global, uma ligação que é anátema do liberalismo, onde só um compromisso para com certas “ideias” pré-selecionadas separa os condenados dos livres. O suporte político da luta da emancipação negra nos E.U. da América significa que o uso de rags por músicos de vanguarda como David Murray ou Henry Threadgill ou Buell Neidlinger é visto como solidariedade social em vez de afastamento das instituições antiquadas (e no caso do neo-conservadorismo de Wynton Marsalis, talvez não – estas coisas só podem ser resolvidas pelo ouvido).
Vaneigem coloca uma abstração – a condenação do consumo – perante o contexto social onde ocorrem as coisas. Ele parece completamente alheado da necessidade de arranjar um bom disco para a festa de sábado à noite. Longe de ser consumido “aleatoriamente” em cadeias de lojas, a presença de Zappa no mercado tem sido uma luta, um empreendimento épico. Embora Zappa tenha começado como compositor autodidata com experiência em composição serial, a sua decisão de “obter público” não envolveu a supressão da lógica do seu material, por algo que agradaria aos ouvintes da classe-média. Ele também queria “matar a ignóbil rádio”, desafiar a anemia pop com R&B. Apesar das contenções da teoria pós-modernista, o antagonismo de classe ainda persiste. Não há nenhuma música que passe fluentemente do “simples” ao “complexo”: as diferentes formas musicais têm dinâmicas próprias. Zappa vislumbrou o seu caminho ao usar o materialismo do público em massa, a sua fome por novos efeitos e choque; uma maneira de subordinar essa dinâmica a um compromisso vanguardista dos novos sons.
A avaliação que Zappa faz da indústria discográfica – um negócio para obter lucros – mostra que não tem ilusões com as loucuras e modas da imprensa rock. A sua única razão de existência é a manutenção de uma conjuntura que dê significado à compra de discos. Jacques Attali falou da necessidade que a indústria discográfica tem de gastar dinheiro a estimular a procura: assim o efeito da produção em massa (o seu termo é “repetição”) diminui precisamente o momento único pelo qual a música deve ser avaliada (aquilo que ele chama “ritual”).
Vista como bem de consumo e objecto de culto e fetiche, a música ilustra toda a nossa sociedade: des-ritualiza uma forma social, reprime uma atividade corporal, especializa a prática, vende-a como espetáculo, generaliza o consumo e depois certifica-se de que está armazenada até perder o significado.1
Apesar de Attali pretender fazer novidade disto, trata-se de teoria marxista. Attali regista o impacto do sistema de mercado na cultura. Walter Benjamin desenvolveu um pensamento parecido ao afirmar que a produção em massa destrói a “aura” do trabalho artístico. Contudo, ao contrário de Attali, Benjamin não diz que se “substitui” a Marx, uma pretensão que Attali pôs em ação mais tarde ao envolver-se com a catastrófica associação socialista de François Miterrand que atacava o padrão de vida da classe trabalhadora francesa – que levou à subida da Frente Nacional de Le Pen.
Seja como for, a fórmula de Attali é útil. Zappa dedica uma atenção especial a estes temas, fetichização de primeira classe (“Penguin in Bondage”), ritual vazio (“Bogus Pomp”), funções corporais (“Why Does It Hurt When I Pee?”), mundo do espetáculo (Thing-Fish), produção em massa (“A Little Green Rosetta”), perda de significado através da repetição (“Teen-age Wind”). Os “extremismos” grotescos de Zappa não são mais que uma resposta a um sistema de mercado que trata as pessoas como coisas, usando todo o vocabulário das raças e da escravatura que a experiência americana proporciona.
Numa entrevista à Telos, a revista trimestral americana da escola marxista de Frankfurt, perguntaram a Zappa se fazia alguma distinção entre arte superior e arte inferior. Ele devolveu a pergunta: “Ou, entre qualquer tipo de arte?”[1]
Esbater a distinção entre arte e vida tem sido uma atividade americana desde Walt Whitman, pelo menos, que exprimia o seu mal-estar com um honroso, embora insuflado, estatuto que era concedido à arte da sociedade desse tempo. Isto explica a aparente contraditória combinação de disciplina e acaso na música de Zappa. “Esta gravação tem de ficar com todas as notas certas”,[2] juntamente com o “Que se foda”.[3] O acaso assinala a entrada do real no projeto. Tal como um surrealista que retrata a Europa devastada antes do começo da Segunda Guerra Mundial,[4] Zappa mistura elementos do mundo real de tal forma que a sua arte se torna microcósmica. Analisa a substância das coisas muito mais profundamente do que a informação real do mundo, o seu passado e o seu futuro. Desde James Joyce que ninguém tentava demolir as barreiras entre arte e vida com um fervor tão produtivo.
Ao falar de arte levantamos a questão da sua definição. Para os marxistas, a arte é o estádio a meio-caminho da burguesia – a meio caminho entre a pompa religiosa do feudalismo e a permanente recriação da vida quotidiana que caracterizaria a sociedade pós-bens-de-consumo. Antes do aparecimento da classe burguesa, os trabalhos artísticos – histórias de aventuras, ocasionais retratos, partituras para alaúde e viola de gamba – não eram investidos com o significado pessoal dado à arte pelos românticos. Se se tivesse incertezas metafísicas, ansiedade sobre o lugar da alma no esquema cósmico das coisas, consultava-se um especialista: o padre. A religião detinha o monopólio dessa faculdade, classificando e castigando como heresia as referências diretas à Bíblia (ou a Deus). Em 1789, a revolução francesa mostrou como a religião apoiou a velha ordem: na fase revolucionária, a burguesia não queria nenhuma das velhas hierarquias do feudalismo e da fé. Ela exigia uma imagem racional do mundo. Quem sondaria agora as profundezas da alma, quem mediria o pulsar de uma vida “interior”? Os poetas e os pintores deram um passo em frente.
A arte foi o substituto da religião, um repositório de valores mais “elevados” que aqueles de fazer dinheiro. As implicações reacionárias deste tipo de idealismo podem ser percebidas (de forma desviada) pelo tom triunfante do senador Paula Hawkins quando, no Senado, fez uma pergunta a Zappa sobre lucros.
PH: O senhor obtém lucros com estes discos de rock?
FZ: Sim.
PH: Obrigado. Acho que esta declaração já diz qualquer coisa ao Comité.[5]
Ao mesmo tempo que a indústria discográfica se deixa censurar, em troca de legislação que reúne dinheiro ao criar um imposto para determinadas gravações, um artista que diz que tem lucro é crucificado. A mesma declaração que devia alinhar Zappa com os interesses económicos da classe dirigente americana é apresentada como prova da sua inutilidade como artista e a sua falência moral como cidadão.
Tais declarações são parecidas com as condenações da esquerda, porque também ela moraliza contra a obrigação de fazer lucros. As estéticas de esquerda sofreram um grande revés desde os dias em que Leon Trótski se correspondia com André Breton sobre as implicações revolucionárias do surrealismo. As dialéticas negativas das habilidades do caniche não têm tempo para as assim chamadas críticas de arte marxistas que meramente completam as altas pretensões da burguesia liberal. Gostar de arte sob o capitalismo é o mesmo que nos divertirmos com a contradição; a outra opção é passar a vida a ler livros de Percy Shelley. Para escárnio dos que impedem a combinação que fazemos entre políticas leninistas e a zappologia, as dialéticas negativas reafirmam um ponto: a arte de Zappa, embora necessariamente colada a uma crença pequeno-burguesa das indústrias caseiras, faz parte de um protesto contra as divisões da sociedade capitalista tanto quanto a música de Charlie Parker ou Kurt Weill. Os que reduzem o marximo a moralidade – um conjunto de palavras-chave que nos separam do resto – arruinaram as dialéticas e impediram qualquer compreensão da indústria cultural. São os mesmos avarentos que disseram que a esquerda devia ignorar o punk. A arte não é simplesmente a representação de aspirações que serão julgadas pelas sua validade. É em si mesma um processo material. Isto cria problemas à ideia de arte como repositório dos chamados valores não-materiais “elevados”. Durante o século dezanove, o próprio desenvolvimento técnico atirou essa ideia para uma crise. À medida que os românticos espremiam cada vez mais expressão pessoal das velhas formas – cromatismo e dissonância na música, simbolismo na poesia, pinturas sobre pintura – alargavam o alcance de conhecimentos artísticos, mas perdiam público. Nas décadas 10 e 20 do século XX o modernismo artístico pressagiou uma nova era na qual não era exigida representação porque a humanidade estava ativamente a construir o mundo – a promessa da revolução russa. Branco em Branco de Casemir Malevich era um objeto no meio do próprio mundo e não uma janela do mundo que ficava para além do antagonismo entre o eu e a sociedade. A sociedade era agora a galeria onde a arte devia operar. À medida que as vitórias da revolução de 1917 recuavam, tais recusas de divisão da sociedade capitalista passaram a não ser bem vindas. No Ocidente, a distância entre trabalhos artísticos modernos e a vida da maioria da população era exibida como evidência da estupidificação massiva; sob o comunismo eram completamente banidos.
A contra-revolução de Estaline suprimiu o poder aos trabalhadores em nome da ideologia “socialista” e instituiu o socialismo realista, um retorno às formas do século dezanove, com uma cláusula para contentamento. O modernismo tornou-se a má consciência do regime. Ao mesmo tempo que Estaline limpava todo o pessoal do comité central bolchevique e os artistas abstratos eram perseguidos e confinados a asilos para loucos.
Sem surpresa, os Estados Unidos viram que podiam promover a arte abstrata em nome da liberdade e empreendimento. Quando Jasper Johns exibiu bandeiras americanas em galerias de arte, um gesto patriótico que não podia ter sido feito mais estrepitosamente, a ação foi explicada por Clement Greenberg como sendo um passo em frente na misteriosa discussão da insipidez da pintura plana, uma dialética que pretendia ignorar todas as políticas da guerra fria. A retrospectiva de Jasper Johns na Galeria Hayward em Londres, em 1991 – no pico da Guerra do Golfo – foi financiada pela Texaco, uma das empresas de petróleo americanas cujos lucros eram ameaçados pela anexação do Kuwait por Saddam Hussein. Tais observações políticas, que desafiam o estatuto de transcendência da arte na sociedade, excedem a composição da ideologia artística americana – incluindo a do pós-modernismo. A observação de Zappa “ou, entre qualquer arte?”, também serve para o libertar de tais obscurantismos. A necessidade de haver negociantes que promovam novas ondas de artistas, a insatisfação dos artistas com o sistema de mercado que não oferecia as promessas do modernismo, levaram à “obsoletização” instantânea que caracteriza os estilos artísticos ocidentais do pós-guerra. A arte tornou-se zona esquizofrénica perigosa, uma mixórdia contraditória de retro-religião, recusa vanguardista. À medida que os comentadores tentavam ver na arte o humanismo de “equilíbrio” de um sistema, conduzido à racionalização do lucro, isso desvanecia-se à frente dos seus olhos com os arcaicos fetiches religiosos (T. S. Elliot, Bob Dylan, Arvo Pärt) ou os criptogramas auto-mutiladores do modernismo (Samuel Beckett, John Cage, Joseph Beuys). Ao manter a sua fé no modernismo e ao reconhecer a incapacidade da arte para transmitir a sua mensagem numa cultura de bens de consumo, os artistas viram-se envolvidos num paradoxo permanente, numa guerrilha de subterfúgios e recusas. Daí a preferência das instituições culturais pelos clássicos produzidos durante a fase heroica da burguesia: Shakespeare, Beethoven, Rembrandt. Reciclar os velhos serve para esconder o preocupante facto de que a sociedade capitalista moderna só produz verdadeira arte quando exalta falhas sociais, resultando numa obsessão com o passado que o modernismo, com o seu consumo filtrado de uma cultura de massas, sob o nome de arte, pouco fez para atenuar.
A busca do modernismo em Zappa é intuitiva em vez de teórica, mantendo a afirmação de que a música e a arte são filosofias concretas – um pensamento sobre o mundo sensualmente globalizante. Them or Us (The Book), a sua resposta às questões de continuidade conceptual, contém uma objeção no prefácio.
Este reles livro, feito em casa, foi preparado para as pessoas que já gostam da música de Zappa se divertirem. Não é para intelectuais e outras pessoas moribundas.
Alguns fanáticos tomam esta hostilidade para com o pensamento sistematizado como pré-requisito para compreender Zappa, o que transformaria um projeto como o presente livro numa obtusidade. Quando comparado com o filistinismo das classes “educadas”, isto é deveras tentador. Contudo, deixa os guardiães da cultura elevada fora de cena, permitindo-os ignorar Zappa como excêntrico do rock de culto. De facto, Zappa tem uma consciência do papel histórico da arte e uma visão do seu lugar nela, tão claras como materialistas.
Há muito que Zappa declarava interesse pelas possibilidades da música clássica. Depois de descobrir a existência de um compositor do século dezoito chamado Francesco Zappa, lançou um disco chamado Francesco, a partir das partituras do Zappa do século dezoito realizadas no computador. Contudo, ele não tinha dúvidas de que o barroco representava uma época de ouro da criatividade musical. Como David Ocker observou na sua nota do folheto do disco, o trabalho do Zappa do séc. XVIII era “dar ao serrote enquanto os nobres jantavam”.
Zappa desenvolveu o assunto no The Real Frank Zappa Book:
As normas praticadas nos velhos tempos começaram a ser usadas porque os tipos que pagavam as contas queriam que as “melodias” que compravam “soassem de certa maneira”.
O Rei dizia: “Corto-te a cabeça se não soar assim.” O Papa dizia: “Arranco-te as unhas se não soar assim.” O Duque, ou outra pessoa qualquer, talvez tenha dito de outra maneira – mas é o mesmo hoje. “A tua canção não passa na rádio se não soar assim.” As pessoas que pensam que a música clássica é de alguma maneira mais elevada que a música radiofónica, deviam dar uma olhadela às formas envolvidas – e a quem paga as contas.
O uso que Zappa faz das partituras musicais não tem nada em comum com os sonhos da pequena burguesia da harmonia pré-industrial, base do consumo de música clássica no século vinte (e do rock neoclássico, de Meat Loaf a Michael Nyman).
Em sintonia com outras figuras da tradição “inventiva” americana – Buckminster Fuller, Charles Ives, Harry Partch, John Cage – as ideias de Zappa têm um toque excêntrico e caseiro, mas por causa da sua atenção a factos que lhe dizem respeito (e a sua impaciência com as justificações liberais), as visões são encorajadas por filosofias radicais e artistas vanguardistas que operam em circunstâncias diferentes. De Sade e Wyndham Lewis traçaram trajetórias paralelas.
O que se segue examina as mais recentes manifestações de tais ideias em Jacques Attali e na Internacional Situacionista, contudo só mesmo Marx e Freud (e o modo como as suas ideias foram aplicadas à música por Theodor Adorno) são capazes de medir a ferocidade dizimadora da arte de Zappa.[1] Telos, Primavera 1991, No. 87, entrevista com Florindo Volpacchio, pp. 124-36. Obrigado a Matthew Caygill por me falar disto.
[2] Frank Zappa, preâmbulo de “Bebop Tango (of the Old Jazzmen’s Church)”, Roxy & Elsewhere.
[3] Nota de Frank Zappa, “The Sheik Yerbouti Tango”, Sheik Yerbouti, 1979. Elevado agora ao estatuto de filosofia menor numa entrevista recente: Zappa! (um suplemnto dos editores de Keyboard e Guitar Player), ed. Don Menn, 1992, p. 64. Aqui é expresso como uma combinação de “quando” e “que se foda” (onde “quando” pode ser interpretado como as “notas certas”).
[4] Max Ernst, Europa Depois da Chuva, 1933.
[5] Audiência no Senado sobre “pornografia no rock”, 1985.
A sirene primaveril da canção transgressora –
Levemo-la na sua incandescente cera
Saturada de cambiantes
Dos quais somos herdeiros
PORQUÊ MARX, PORQUÊ FREUD
Estes escritos, publicados sob o pseudónimo Out to Lunch [2], têm origem em vários periódicos de vanguarda do início dos anos 80. O trabalho de Frank Zappa servia para analisar e ao mesmo tempo denegrir as conquistas da literatura Ocidental, desde os românticos até Henry James, um método que se chamava as dialéticas negativas das habilidades do caniche. Embora escrito de um modo que atraía mais facilmente os literati que os fanáticos do rock, o parágrafo de abertura – “Frank Zappa: As Dialéticas Negativas das Habilidades do Caniche, Parte Um" – ainda resume, para mim, as alegrias e horrores de analisar Zappa e a sua arte.
Ao escrever sobre Zappa comprometer-me-ei com determinadas relações da engrenagem da racionalidade aceite, não quero parecer impressionista ao escrever, nem fazer arte pela arte; a liberdade é sempre constrangida pela necessidade de termos de descer a montanha. Por outro lado, odeio a entediante e ruidosa preocupação do alpinista e as suas auto-justificações, quando a linguagem se torna apologética ela já é corrupta[3] e a linguagem dos zappólogos não é exceção. As descobertas dos zappógrafos não devem ser abandonadas a encarquilhar nas águas da religião para, como bengala, serem transformadas em ilusórios cestos coletores de moralidade forjada. Pelo contrário, as descobertas devem ser usadas para atenuar a auréola inflamada de ansiedade visceral que a reprovação espalha até aos nossos mais obscuros pontos de prazer. A aplicação direta deste unguento, contudo, só encrava o motor, tal como o cinto de segurança que encolheu e ficou mais pequeno.[4] À semelhança da psicanálise, o objetivo é notificar uma cura a partir de dentro e não construir uma cerca de constrangimentos morais. Mas, ao contrário das perversões domesticadas da psiquiatria, a zappografia não pensa regressar aos excessos do motor 2-4-6-8 universal de transmissão por cinto. Desembraiamos, porque tem de ser, atiramos todas as propulsoras intenções aos ventos e, se as peças começam a cair aos bocados, então é porque não valeu a pena consertá-la. Não é que vá evitar algum “risco” envolvido na escrita, pode-se sempre riscar coisas. Cada vez que um tema de Zappa prova a sua valia, percebemos, seja como for, que todo o processo desempenha um papel num microcosmos: dia a dia, o significado e a confiança recoagulam. É errado enfrentar as inevitáveis pressões que levam à justificação, mas isso não quer dizer que não cheguemos lá no fim, ou que não as tenhamos enfrentado antes. Eu prefiro entrar pelas traseiras e ocupar o inimigo por dentro. A estratégia mais primária reside em pegar nas irrelevâncias mais comuns, estruturas que não possuem nenhuma possibilidade de analogia – como os dentes. Mas antes dessa iluminação, a continuidade conceptual do caniche acena-nos. Irrelevância ainda mais comum, porque a sua confiança grosseira começa a assemelhar-se às percepções da caixa de velocidades no coração do motor.[5]
O original prosseguia, comparando “Cheepnis”[6] de Zappa a “Kubla Khan” de Samuel Taylor Coleridge – mas de certeza que a generalidade dos leitores não lucraria nada com tal espécie de preâmbulo.[7]
Para além de se preocupar com Frank Zappa e os seus concertos, vídeos e discos, as dialéticas negativas das habilidades do caniche também lhe aplicam as visões de Karl Marx e Sigmund Freud. Embora tenham sido, supostamente, substituídos pelas escolas de pensamento pós-tudo,[8] as ideias de ambos continuam a brilhar ardentemente, talvez porque aquilo de que falavam – capitalismo e família – ainda estejam no meio de nós. Embora se diga muitas vezes incompatíveis, Marx e Freud partilham características fulcrais: materialismo, hostilidade em relação à religião, obstinada insistência na capacidade da razão humana para apoiar e mudar tanto o mundo como a mente. Ao seu jeito, não erudito, Zappa mantém uma similar crença na razão, recusa-se a permitir que as normas sociais comprometam uma visão de como as coisas podiam ser. Marx desejava fomentar a autoconsciência política da classe trabalhadora; a palavra de ordem de Freud, “o ego estará onde o impulso instintivo estiver,” mostra uma confiança na consciência que está muito longe do pessimismo de Nietzsche e dos seus herdeiros parisienses. Ao desembaraçarem-se dos mistérios e do inconsciente, Marx e Freud são frequentemente condenados pelos que defendem a ordem atual – mas para mim isto indica apenas uma não verdade no modo como as coisas são geridas, tais condenações não denigrem as suas teorias.
Se alguém envolvido na cultura de massas parece apontar para uma não verdade como as coisas são geridas, essa pessoa é Frank Zappa. Obstinado, irredutível, opositor, a sua música é uma disjunção contínua, um Dada permanente. As suas políticas explícitas – lealdade à unidade familiar e honestidade nos negócios mais pequenos – estão tão longe da psicanálise radical ou do marxismo quanto conseguirem imaginar, mas é precisamente porque ele não devolve tais preceitos filosóficos ao nível da representação que a sua música proporciona um malte convincente para o pensamento radical. Zappa produziu uma miscigenação de elementos altos e baixos que envergonham a retórica da arte pop e o pós-modernismo.
A crença de Zappa no conhecimento, que é um golpe à opressão, é ilustrada por este diálogo com um cristão born again durante uma audiência sobre “pornografia no rock” no Senado dos E.U. Poderão imaginar o sentimento das palavras pelo tremor incaracterístico da voz.
CRISTÃO: Algumas destas coisas não são relações sexuais normais.
FZ: Não quer dizer que tenhas de as fazer. A informação não te mata...
CRISTÃO: Elas são demasiado novas para saberem a diferença.
FZ: As crianças aprendem a ver as diferenças ao receberem informação que conseguem juntar e depois selecionar com a tua ajuda de pai. Se não as fizeres saber estas coisas, crescerão e serão ignorantes.
CRISTÃO: Gostava de os manter ignorantes de certas coisas. [Aplauso em massa.]
FZ: Uma pessoa que prefere que as crianças sejam ignorantes está a cometer um grande erro – porque nesse momento, elas podem ser vítimas.[9]
O colapso do comunismo na Europa de Leste levou à morte do estado socialista como ideologia viável para a classe média liberal. Enquanto o vácuo que isto criou é preenchido por uma nova panóplia de irracionalismos de uma nova era, o apelo de Zappa para a razão é tão raro como oportuno.
[1] Hart Crane, “For The Marriage of Faustus and Helen”, 1926, The Complete Poems and Selected Letters, ed. Brom Weber, 1966, p. 31. Tradução de P.M.
[2] Out To Lunch, “Frank Zappa: The Negative Dialectics of Poodle Play Part One’, A Vision Very Like Reality, ed. Peter Ackroyd, Ian Patterson, Nik Totton, Dezembro 1979; “Frank Zappa: The Negative Dialectics of Poodle Play Part Two’, Reality Studios, ed. Ken Edwards, Vol. 5, Nos. 1-4, 1983; “Erogenous Sewage: Poodle Play Explores the Work of Hart Crane’, Heretic, ed. Paul Broen, Vol. 1, No 2, 1980; Out to Another Lunch Party: Plato’s transcendental sofa grounded in material hide by revelations concerning frightened phallicism, spatial screaming and nasal spores”, Equofinality, ed. John Wilkinson, Rod Mengham, No. 2, 1982; So Much Plotted Freedom: The Cost of employing the language of fetishized domination – poodle play explores the sex economy of Henry James” lingo jingo, Reality Studios, Occasional Paper, No. 6, 1987; “Secret Hungers in Horace”, Horace Whom I Hated So, ed. Harry Gilonis, 1992; Secret Hungers in Horace: The Negative Dialectics of Poodle Play Performs a Psychoanalgesis on Horace, Form Books, Occasional Paper, No. 1, 1993.
[3] Theodor Adorno and Max Horkheimer, The Dialectic of Enlightenment, 1944, p. 219.
[4] Frank Zappa, “Florentine Pogen’, One Size Fits All, 1975.
[5] Out To Lunch, “Frank Zappa: The Negative Dialectics of Poodle Play Part One’, A vision Very Like Reality, ed. Peter Ackcroyd, Ian Patterson, Nick Totton, Dezembro 1979, p. 22. Estas palavras também serviram como texto para um concerto para leitor, orquestra e guiterra eléctrica de Simon Fell, Four Slices of Zappa, 1992.
[6] Frank Zappa “Cheepnis”, Roxy & Elsewhere, 1974.
[7] Um preâmbulo que se estende ao resto do prefácio e aos próximos cinco capítulos. Os leitores que queiram passar à frente e ir ao âmago da questão, podem ver a discussão sobre “cuecas” na secção intitulada “Roxy & Elsewhere” no Capítulo 5: Da Bizarre à Discreet.
[8] O termo pós-modernismo é notoriamente vago, mas apesar disso foi bem resumido por Anna Copeland: “Uma reacção a tradições intelectuais que tentam explicar o mundo usando conceitos universais como os modelos freudianos da personalidade, teorias marxistas da economia, ou as explicações causa-efeito usadas pelos historiadores, o pós-modernismo vê a vida no final do século-vinte como uma série de acontecimentos desconexos, um self-service de narrativas ou dissertações que competem para obter atenção.” “Two Cultures: A Reader’s Guide”, Omni, Vol. 16, No. 2, Novembro 1993, p. 44. É contra pós-modernismo deste jaez que as habilidades do caniche se opõem (juntamente com Alex Callinicos; vejam o seu Against Postmodernism: A Marxist Critique, 1989).
[9] Audiência no senado sobre “pornografia no rock”, 1985.
MÚSICA, SEM PALAVRAS, ORGASMO Vs. RETENÇÃO ANAL
‘Apostrophe’ é também o nome de uma faixa instrumental de Apostrophe (‘), uma improvisação de Frank Zappa, Jack Bruce e Jim Gordon. O título é talvez uma piscadela de olho a ‘Epistrophy’ de Thelonious Monk. Julian Colbeck, que demonstra algum entusiasmo pelo volteface de Zappa na DiscReet, fala mal do tema (‘desperdício’), dizendo que Zappa tinha sido indulgente. Zappa referiu que, para ele, Jack Bruce é um baixista com demasiados ‘ornamentos’, mas a posição central que o tema ocupa no álbum e a sua virtuosidade sensual e fantasista tornam-no bom demais para ser ignorado. Tal como Colbeck assinala, Zappa sempre teve em grande ‘consideração’ os Cream. Descreveu o grupo do princípio dos anos 60 com Paul Woods no baixo e Les Papp na bateria como próximo do ‘formato-tipo-Eric Clapton-Cream’, mais, a voz de Eric Clapton foi usada em We’re Only in It for the Money, onde é descrito nas notas como ‘filósofo e guitarrista notável dos THE CREAM’. E com razão: Clapton, Bruce e Baker foram pioneiros ao nível da Jimi Hendrix Experience, trazendo espontaneidade improvisada e inovações electro-acústicas a públicos mais vastos. Só em retrospectiva, com as descidas de Clapton a um country-rock fácil e o consequente afundamento do rótulo do ‘heavy-rock’ por sucessivas vagas de piratas britânicos, perdeu este legado o seu brilho. Tal como ‘cream’, ‘boogie’ quer dizer sémen: ‘Faço isto a toda a hora / Não é este boogie uma porcaria!’ no final de ‘Stinkfoot’, e prova um climax no diálogo do Bobi (Fido). O momento do orgasmo é o auge impronunciável que é normalmente afastado do discurso educado: o busílis da questão é um tributo musical aos Cream, a guitarra como deus-chefe. Foi gravado em Dezembro de 1972 no Electric Ladyland, o estúdio construído por Hendrix.
Contudo, mesmo o orgasmo, não está livre de relações de propriedade.
ERIC BUXTON: Apostrophe (‘) é um conceito?
FZ: Bom, o apóstrofe é aquela coisinha engraçada, sabes, que fica ali pendurada no final da palavra e que quer dizer...
EB: Tem uma determinada função.
FZ: Tem. Tem várias funções. Quer dizer propriedade.
EB: Propriedade. Ok. Era nisso que estavas a pensar quando...
FZ: Era.
Zappa define normalmente a crítica ao socialismo de maneira convencional e ideológica, referindo que em todas as línguas ‘a primeira palavra depois de Mamã que todos os miúdos aprendem é Meu!’ Visto de um ponto de vista freudiano mamã-meu é uma redução do complexo de castração, desenvolvimento de uma perversidade polimorfa e indiferenciada para uma obsessão com aquilo que tu tens medo de perder. O ‘ok’ de Eric Buxton à explicação de Zappa para o ‘significado’ do título do álbum demonstra o logro de esperar resolver os enigmas de Zappa com referências à fonte. Gramaticamente o apóstrofe não significa propriedade, significa omissão. Ao elidir a palavra ‘has’, contudo, quer dizer propriedade: ‘Richard has toy’ torna-se ‘Richard’s toy’. Por esta lógica, um existencialista podia dizer que o apóstrofe significa a própria existência (Richard’s weird’ quer dizer ‘Richard is weird’); (...) Nos aglomerados poéticos de Apostrophe (‘) a propriedade e o medo da ausência são objecto do mesmo jogo de palavras. A insistência de Zappa no uso específico do apóstrofe demonstra a sua própria interpretação, revelando a base socio-económica dos valores de produção do disco.
Quando Nanook se envolve no seu ‘vigoroso movimento circular’, cega o ‘caçador de peles’ que vinha ‘directamente do comércio’. O rock ‘n’ roll é música delinquente que propõe um prazer imediato em contraponto com a gratificação adiada da escola e do trabalho. As ameaças dos pais sobre o perigo do sexo sugerem retenção anal e uma restrição do gasto (termo victoriano para o orgasmo).
E a minha mãe gritou:
Nanook-a, não, não
Nanook-a, não, não
Não sejas um esquimó maroto-to-oh
Poupa o teu dinheiro; não vás ao espectáculo
Nanook é um verdadeiro esquimó maroto, com as suas frases de abertura com centenas e zeros (e treze rimas em ‘O’) e o seu interesse num movimento circular.
A partir do qual eu prossegui pegando na mitene cheia
Daqueles Cristais de Neve Amarelos
E a esfreguei nos seus pequeninos olhos
Com um vigoroso movimento circular
Até aí desconhecido pelas pessoas desta área,
Mas que está destinado a tomar o lugar do TUBARÃO DA LAMA
Na vossa mitologia
Aqui vai ele...
O MOVIMENTO CIRCULAR... (esfrega)...
(Anda cá Bobi... Anda cá Bobi)
De acordo com Norman O. Brown, revolucionário freudiano e psicoanalista do inconsciente do capitalismo, as ameaças dos pais à sexualidade são causa de uma regressão do estádio genital ao estádio anal, num fascínio com as fezes que encontra sublimação no ganhar dinheiro e na formação de capital. A analidade luterana e a ética de trabalho protestante sempre foram companheiras. De maneira a sarar os olhos depois do encontro com Nanook, o caçador de peles deve atravessar a tundra, quilómetro após quilómetro, até chegar à paróquia de St. Alphonzo (‘santo patrono dos pescadores de salmão de Extracção Portuguesa’, de acordo com o que Zappa diz nos concertos) onde deverá adquirir a visão, ao asistir ao Pequeno Almoço do Santo Alphonzo e esfregar margarina nos olhos. Ao sofrer a tradicional punição dada à masturbação – a cegueira – o caçador de peles tem um encontro com alguém envolvido na produção em massa de panquecas. A disciplina no trabalho e a produção em massa aparecem na obra de Zappa com uma frequência sistemática.
‘Father O’Blivion’ é uma sátira religiosa comprimida. Enquanto ele ‘bate a massa / para as panquecas da sua tribo’, um gnomo (mais um ‘anão’), atinge-o no avental, causando-lhe uma erecção – e ele disfarça-a com um ‘Uu uu uu’. Depois convida todos a comer o que fez:
São tão leves fofinhas brancas
Vamos fazer uma fortuna até à noite
São tão leves fofinhas castanhas
São as melhores cá do sítio
Chupar caralhos é a imagem preferida de Zappa para a sujeição – mas ao serem ‘fofinhas castanhas’ as panquecas também se tornam fezes.
Bom dia sua Alteza
Uuu-uuu-uuu
Trouxe-lhe o seu sapato da neve
Uuu-uuu-uuu
Alphonzo torna a sua congregação num Bobi servil que vai buscar calçado. É uma junção tipicamente freudiana: o fetiche consiste simultaneamente em falo, fezes e pé. Henry James, que definiu inconscientemente junções psicológicas similares, relacionou o fetiche ao dinheiro:
Um homem com sentimentos decentes não expunha o dinheiro, um monte dele, de tal maneira, debaixo do nariz de uma pobre rapariga – uma rapariga cuja pobreza era, por moda, a própria base do gozo que tinha com a sua hospitalidade – sem ver, logicamente, ligado a ele, a responsabilidade.
É um monte, e por isso excremento, expõe-se como um falo, é ofensivo ao nariz e por isso é como o calçado (‘O teu CHULÉ dá-me cabo do nariz,’ diz a namorada do narrador em Apostrophe (‘)). James aponta para a mesma ameaça tripla que Zappa, tal como toca no mesmo infeliz destino de Justine de de Sade (outra pobre rapariga sujeita à ‘hospitalidade’ de um homem). Na sintaxe atormentada de Henry James, as sucessivas interpolações entre o nariz e a responsabilidade subvertem a primeira leitura, implicando que é responsabilidade da pobre rapariga retribuir a hospitalidade do homem – ao comer os excrementos dele, chupar-lhe o caralho e beijar-lhe o pé. Ao dizer-nos o que o homem decente não faz, ele dá uma volta à fábula erótica. A psicoanálise assinala que quanto maior é o investimento físico repressivo, mais violentamente aquilo que é reprimido regressa sob formas inconscientes: o mestre fica horrificado com a afirmação de que ‘o enigma está no apóstrofo’ mas responde num vólei de negações e apóstrofes (ou é ele? O dialogo torna-se irremediavelmente confuso com o discurso indirecto e os parênteses conceptuais).
A imagem de sémen, excrementos e calçado sublinham apenas o facto de que o Padre Vivian O’Blivion faz uma fortuna a vigarizar o rebanho. As apresentações ao vivo da suite Yellow Snow seguiam para uma canção chamada ‘Rollo’, que explicava para onde ia o dinheiro:
Para um parvalhão com um cesto
Para onde ele vai nem nos atrevemos a perguntar
Tal como Henry James, Zappa está consciente que o maior fetiche é o dinheiro, porque no capitalismo é o dinheiro que torna tudo igual a tudo o resto, permitindo aos exploradores retirar lucros.
‘Uncle Remus’, composta por George Duke, fala directamente de temas políticos. Pergunta se o movimento de direitos civis dos negros se está a ‘mexer’ demasiado ‘devagar’.
Nós estamos muita janotas com estas roupas (ah pois é)
A não ser que sejamos mangueirados
O dia não corre mal
Se se agacharem como queres
‘Cepto no Inverno, quando está frio
E é difícil se te acerta
No teu nariz
No teu nariz
Mantém o nariz
Perto da pedra de amolar, dizem eles
Isso vai redimir-nos
Tio Remus...
Esta inteligente descrição do estilo de vida urbano contemporâneo dos negros – com os canhões de água que usados para acalmar motins e marchas – usa todos os temas anteriores. Mais uma vez, a noção de jacto de água tem um sentido fálico, que também se relaciona com as duras verdades das necessidades económicas. A pedra de amolar, contudo, não é suficiente. A melodia luminosa e estival usa todos os romanticismos pós-McCoy Tyner de George Duke para sublinhar a natureza redentora de políticas seculares. É uma fusão perfeita de visão política e canção. A dialéctica do simbolismo do cabelo é desenvolvida ao comentar o abandono de cortes de cabelo (conseguidos ao apanhar o cabelo numa rede) que pretendiam dar um visual ‘Afro’.
Mal consigo esperar que o meu ‘Fro’ cresça
Para deixar em casa a minha rede
As arcanas abreviações relacionam-se com os mistérios do pequeno rubi de Korla Planton de ‘Excentrifugal Forz’ (em si mesma uma versão refractada das políticas raciais de ‘More Trouble Every Day’). Ainda que os significados não fiquem registados, há algo de verdadeiramente evocativo nestes fragmentos herméticos de cultura negra, uma resistência codificada à homogeneidade americana.
Em ‘Cosmik Debris’ o Mystery Man dizia ter
... o óleo de Afro-dite
E a poeira do Grand Wazoo
A maneira como Zappa pronuncia a deusa Afrodite sublinha o elemento africano do nome, precisamente o elemento que os classicistas da cultura grega sempre procuraram negar (principalmente entre a última década do século XIX e a década de 20 do século XX, pontos altos do racismo europeu). O entusiasmo de Zappa para aquilo que é historicamente ‘dúbio’ em The Grand Wazoo pega nas políticas culturais que informam o uso que Sun Ra faz de motivos egípcios: um reconhecimento da misceginação, da cultura como uma mistura, um assalto ao modelo romântico de perfeição divina e pura. Em 1974, Zappa já fazia uma crítica subterrânea à Grécia-Antiga-Ariana-imaculada-pela-África, uma crítica que Martin Bernal – após décadas de pesquisa – trouxe à luz do dia em 1987, mostrando que a civilização grega deriva na verdade de um Egipto antigo misturado (os rostos das múmias variam do castanho ao preto). O facto de África regressar mais tarde nos discos como um corte de cabelo – que manifestava a consciência do ser negro – ilustra o modo profundo em que a recusa de Zappa de ser manietado a nível cultural faz ligações, através da história, aos assuntos pessoais mais íntimos. A busca de beleza, Afrodite, ‘preto é bonito’ – tudo isto são aspectos de um único tema político: a escravidão e o racismo.
‘Uncle Remus’ prossegue:
Dou uma volta por
BEVERLY HILLS
Antes do sol nascer
E deito abaixo os joqueizinhos
Dos jardins dos ricos
Isto relaciona-se com a paisagem de uma cidade de brinquedos e o seu sentimento esquizofrénico de duplicação que informa ‘Cheepnis’. O joqueizinho referido é um ornamento racista de jardim que retrata um rapaz negro que trabalha nos estábulos, comum nos subúrbios brancos dos E.U. O artista possui uma estranha relação com os apêndices ornamentais da burguesia. Esta ansiedade foi demonstrada por um dos meninos de David Hockney quando este afaga a cabeça de alce empalhada do filme A Bigger Splash; em Robert McAlmon quando a sua patroa se recusa a comprar-lhe um busto, dizendo que ele não era companhia para a ‘rapariga avantajada que come uvas’ na biblioteca; em Philip Marlowe, o relutante servidor da haute bourgoisie, que ele inicia uma relação com ‘um negro pintado com calças de montar brancas, blusão verde e boné’ à porta de casa da patroa, imaginando que ambos são vítimas da sua voluntária inacessibilidade. O artista é ele próprio uma peça desnecessária de bric-a-brac, Zappa defende o seu bocado criticando uma política que só pode ir longe como iconoclastia. Como ele mais tarde demonstrou com o uso de um ‘dialecto negróide’, as políticas que só operam ao nível do simbólico – o superficialismo – restringem meramente o espaço onde a arte opera, sem alcançar verdadeiros vantagens (ou nos redimirem).
CABELO
O cabelo é a principal arma de defesa da contra-cultura. Numa sociedade onde os indivíduos parecem confrontar-se como se fossem agentes de determinados grupos, os cortes de cabelo constituem uma espécie de linha limite que a autoridade vê como transgressora ou possível de incorporar diferentes momentos. Ao contrário das roupas, que são evidentemente manufacturadas, o cabelo inscreve a orientação social daquele que o usa. À semelhança das tatuagens ou dos anéis no nariz, é uma parte do corpo com o qual o indivíduo não pode deixar de fazer uma declaração social.
A religião burguesa da arte gostaria de manter a arte separada da moda. E isto é simplesmente impossível. Desde que o objecto estético começou a assumir posições polémicas contra a sociedade, e o seu espírito objectivo, que ele mantém uma ligação secreta a essa sociedade através da moda.*
A Menina Pamela das G.T.O. começa o seu livro Confessions com um relato de um corte de cabelo de Elvis Presley:
Tenho arrepios sempre que vejo aqueles velhos filmes a preto e branco do Elvis a desmontar-se todo para entrar no ritmo do Tio Sam. Quando passava a mão pelas raízes da sua antiga juba azul escura, sentia uma dor momentânea nas têmporas. No glorioso ano de 1960, fui ao Reseda Theatre com os meus pais e vi aquelas filmagens famosas do exército, antes da matança em Psico. Não sei o que era mais horrível. Agarrei-me ao pescoço do meu pai, inspirei a familiaridade reconfortante da sua loção aftershave e belisquei-me à medida que o Norman Bates fazia o seu trabalho sujo, e o barbeiro do exército o seu. Tentei crer que o Elvis estivesse a cumprir o seu dever como AMERICANO, mas mesmo aos onze anos percebi que a sua vulgaridade tinha diminuido consideravelmente.
O discurso faz lembrar a velha associação bíblica dos cortes de cabelo e a castração (Sansão e Dalila). A Menina Pamela refere um momento histórico do corte de cabelo. Depois de uma aceitação tão abrangente de temas de castração, de maneira a poder radiodifundir a domesticação de Elvis e a morte do rock ‘n’ roll, não havia dúvida que a revolução do rock e a oposição à guerra do Vietnam seria travada pelos cabeludos. Ligar o cabelo comprido à rebelião foi frase feita dos anos 60. De acordo com David Walley, os donos dos clubes de L.A. recusavam agendar bandas com o cabelo curto durante a explosão dos Beatles em 1965. Zappa disse aos Mothers para deixarem crescer os deles. Roy Estrada e Jimmy Carl Black, que viviam em Santa Ana em Orange County, a base do poder de Richard Nixon e também notável bastião de conservadores, evitavam alguns problemas penteando o cabelo para trás, quando voltavam a casa à noite. O cabelo comprido tinha tanto mais estilo quanto mais comprido fosse. A Menina Pamela conta uma história comovente do seu namorado oleoso rejeitado, Bob Martine, que tentava transformar James Dean em Jim Morrison.
Saiu no dia seguinte e comprou umas calças à boca de sino, de bombazine, que lhe ficavam muito curtas; penteou a preciosa cabeleira para trás. Ficava espetada para os dois lados, como o Bozo. Eu gemi calmamente, sofria de compaixão.
Em Ruben & the Jets havia instruções para atingir um ondulado perfeito, uma brincadeira sobre as modas antiquadas que, para um público mais jovem, pareciam simplesmente surreais. As mudanças nos cortes de cabelo resumiam a transição da rebelião contra a escola e pais a uma denúncia global do capitalismo: do rock ‘n’ roll aos freaks.
Tal como em tudo o resto, o punk virou o simbolismo ao contrário: o cabelo comprido foi atacado por ser conformista e corrupto. No final dos anos 80, o conformismo dos cabelos compridos já tinha vertido no resto da comunidade: o prestígio económico e tecnocrata do ‘guru unix' dos hippies significava que o cabelo comprido se tinha tornado aceitável num ambiente de negócios (com rabo de cavalo – os Heaven 17 previram isto mesmo na capa da Penthouse and Pavement em 1981).
Tal como o falo na versão lacaniana de Freud, o objecto totémico só tem significado dentro de um contexto e pode, por isso, conter em si contradições. Só aqueles que acreditam que o estilo e os objectos de arte têm um significado como essência intrínseca são surpreendidos pelo modo como subitamente invertem a sua lógica.
Zappa sempre foi sensível para a natureza instável do estilo-da-oposição, mas a sua atenção materialista para os pormenores significava que ele não propunha um “não-estilo” transcendental alternativo (uma opção que leva concerteza a confusões ideológicas). Embora seja frequentemente atacado pela ‘vulgaridade’ dos seus temas, Zappa constrói a sua arte a partir de detritos da cultura de massas, a espuma fétida que flutua quando a trajectória intermitente da moda renasce.
Quem é que se importa se o cabelo é grande ou curto
Ou sprâiado ou parcialmente cinzento
SABEMOS QUE O CABELO NÃO É O MAIS IMPORTANTE**
O ‘niilismo’ de Zappa, pelo qual foi atacado na Let It Rock em 1975, é de facto a recusa de uma ética binária. É o aspecto utópico da inovação musical que procura dar significado, na sua especificidade, à actualidade do som, em vez de tentar fazer escolhas a partir de categorias predefinidas, opções essas que, elas sim, trazem a opressão. A atenção dada ao símbolo chave do cabelo dos anos 60, levou Zappa a trabalhar a mesma dialéctica que Arnold Shoenberg questionou, na polaridade tradicional dos tons maiores e menores, no tema e variações, na tonalidade e no cromatismo – uma interpelação que levou à atonalidade livre.
*Theodor Adorno, Teoria Estética.
** "Who Cares if hair is long or short / Or sprayed or partly grayed / WE KNOW THAT HAIR AIN'T WHERE IT'S AT". Frank Zappa, 'Take Your Clothes Off When You Dance'.
O MATERIALISMO E A ALMA
Fédon inclui ainda algumas ideias contra a assunção do corpo como lira, e a alma como harmonia, ambas baseadas no horror do ser corpóreo. Toda a argumentação é uma negação do corpo. Fédon é um texto fundador da filosofia europeia, mas está completamente em oposição aos materialistas sexuais. Fédon perde fé nas ideias de Sócrates, sofre uma tosquia e torna-se Bobi, a negação ordinária que habita o coração do rock ‘n’ roll e da revolução. O arcaico arcano de inúmeras gerações de velhos cagões misóginos reprimidos e opressores, a pedra de toque de todos os sistemas elitistas do mundo Ocidental, obtém a sua justa recompensa num disco que chegou ao top dez americano.
O ‘movimento circular vigoroso’ de Nanook ‘destina-se a substituir o Tubarão da Lama / na vossa mitologia’*. O 'Tubarão da Lama' era uma dança que deveria ‘varrer o oceano’ (como o twist): em Fillmore Eats June 1971, foi um sucesso (i.e. na Austrália), Zappa tornou o ‘The Mud Shark’ num acontecimento de dança. O famoso twist era apenas a mais bem sucedida de uma série de danças – o hucklebuck, o watusi, o funky chicken – que, na sua obra, se constituíram como pequenas extrusões comerciais de rituais tradicionais africanos. Ao levar o público a dançar e a divertir-se no palco, Zappa dramatiza a questão, e torna a colocar as pessoas em contacto com os corpos, recusando o idealismo elitista de Platão e a sua negação do corpo. Depois deste aviltamento – que, passa por todas as redes da indústria musical e varreu mesmo o oceano – duvida-se que Fédon sobreviva fora das academias como algo mais do que uma nota de roda pé onde o zappólogo esfola os queixos.
* "destined to take the place of the Mud Shark / In your mythology". 'Nanook Rubs it'. Apostrophe ('), 1974.
Já há muito tempo que não prosseguia esta odisseia chamada As Dialécticas Negativas das Habilidades do Caniche de Ben Watson, sobre o trabalho de Frank Zappa. Para além da tradução ser bastante difícil não tenho tido tempo para lhe dedicar a atenção que merece. Para os mais assíduos, posso dizer-vos que ainda nem cheguei a meio do livro... abraços zappianos a todos. Ainda andas por aí Xavier...?
CANICHES E FILOSOFIA
Em Apostrophe (‘) o assalto a Platão surge-nos através de um blues-falado, em diálogo permanente, chamado ‘Stink-Foot’. Foi inspirado no anúncio de televisão do spray desodorizante pedial Mennen, onde um cão desmaia depois do seu dono tirar os sapatos. Como salientou Zappa:
Se pensam que tenho um fetiche com cães, estão muito enganados. Não é uma coisa profunda, é diversão apenas. Os caniches são um bom mecanismo para veícular certas ideias filosóficas que de outra maneira seriam mais difíceis de passar.
Fédon é o trabalho de Platão sobre a imortalidade da alma, consiste no relato da morte de Sócrates por um dos seus discípulos preferidos, chamado Fédon. Em palco, Frank Zappa andava a apresentar ‘Dirty Love’ com o seguinte relato da génese dos caniches.
No início, Deus criou a luz. Pouco depois, Deus criou o caniche. Ora, como se devem lembrar da vossa infância, há muito tempo, Deus era fantástico a fazer coisas. A sua qualidade e perícia baixaram um bocado desde aí (os japoneses continuaram o trabalho no ponto onde ele parou), mas quando Ele projectou originalmente o Caniche, este era um cão bastante arguto e bonito. Tinha pêlo bem distribuido por todo o seu galante e pequeno corpo tipo-canino (a mim parece-me bem, e a vocês?). Depois Deus fez dois grandes erros. O primeiro chamou-se Homem e o segundo chamou-se Mulher. A Mulher olhou para o Caniche e disse para consigo: ‘Epá, eu gostava muito de foder este cão, só que ele não está suficientemente na moda para mim’. De onde o Homem saiu imediatamente do Jardim do Éden, arranjou um emprego e trouxe um cheque à Mulher, que pegou no dinheiro, saiu de casa e comprou uma tesoura. Pegou na tesoura e tosquiou o Caniche nas seguintes importantes áreas: Focinho, Tórax, Medula, Manágua, Ornamento (aqui). E depois colocou o cão numa posição que fosse favorável aos seus pendentes procedimentos eróticos. Pôs o cão assim, deitou-se, meteu as pernas no ar assim e olhou bem nos olhos do acima mencionado Caniche e disse:
Dá-me
O teu amor obsceno
Como se te pudesses render
A um qualquer dragão dos teus sonhos
Na Dialéctica da Iluminação Adorno estabeleceu uma ligação entre os bobos anões da corte absolutista e a moda dos cães de colo. Quando fala das mulheres numa sociedade gerida por machos, ele explica que elas encontram saída no
neo-budismo e nos cães pequineses, cujas caras distorcidas, tanto hoje como nos velhos quadros, nos fazem lembrar aqueles bobos que foram ultrapassados pela marcha do progresso. As dimensões pequenas do cão, tal como as suas cabriolas funambulescas, mostram ainda os contornos mutilados da natureza.
Adorno fala de um sentimento de terror similar ao evocado pelo caniche. Adorno explica as nossas reacções usando um verniz freudiano-marxista; Zappa junta intuitivamente os temas de acordo com a sua estética surrealista-documental, mas ambos estão a falar dos mesmos assuntos. O caniche tosquiado e o anão (Evelyn o cão ‘pondera o significado do comportamento de uma pessoa de baixa estatura’ em One Size Fits All) ambos representam a natureza subjugada.
Quando Bubba (o director de estrada de Zappa da digressão de 1976 e também de Tony Orlando e Dawn) perdeu no gamão com Smothers, o guarda-costas de dois metros de Zappa, aquilo que ele perdeu foi a barba (se Smothers perdesse tinha de deixar de rapar a cabeça). Em concerto, no Troy, em Nova Iorque, 1976, Smothers barbeou Bubba ao vivo, no palco. Evento que substituiu a normal palestra dos caniches (a que Zappa se referia como ‘discurso sobre as origens da sedução do caniche’). Quando lhe perguntaram como se sentia por ter sido barbeado ao vivo em palco, Bubba respondeu, ‘Sinto-me um imbecil!’, (schmuck) termo ídiche para a uma pele circuncisada. Tal como Dalila tirou a coragem a Sansão cortando-lhe o cabelo, o ritual do tosquiar do caniche é análogo à castração.
Fédon/Bobi, procurando o tapete do conforto doméstico e assegurando-se da sua imortalidade, vai buscar obedientemente os chinelos para a sua dose de ‘consolação’. Ao ser tosquiado, contudo, ele aprende outra coisa: a actualidade da perda, castração e mortalidade.
Fédon – Vou-te dizer como foi. Aconteceu que eu estava, justamente à sua direita, num banquinho ao pé do catre, ficando ele num plano muito mais alto. Afagando-me a cabeça e abarcando com a mão os cabelos que me cobriam a nuca – pois sempre que se lhe oferecia ocasião gracejava a respeito da minha cabeleira – disse-me: Decerto é amanhã, Fédon, que vais cortar esta bela cabeleira?
Penso que sim, Sócrates, respondi.
Não, se me aceitares um conselho.
Que devo, então, fazer? Perguntei.
Hoje mesmo, disse, cortarei a minha, como farás com a tua, se o nosso argumento vier a morrer e nos revelarmos incapazes de lhe dar lume e vida. Pela minha parte, se estivesse em teu lugar e o argumento me escorregasse por entre os dedos, faria um juramento à feição dos Argivos, de não deixar crescer os cabelos enquanto não vencesse em luta franca a proposição de Símias e Cibete.
Nas habilidades do caniche, tal como nos sonhos, os símbolos condensam múltiplos significados – as contradições coexistem lado a lado. O cão Bobi é uma perversidade polimórfica tosquiada e reduzida ao nível genital; o cão Bobi é uma natureza mutilada e confinada e desbastada pela civilização; o par Bobi/Fédon é uma aspiração esperançosa de crença na imortalidade de quem, depois das esperanças terem sido defraudadas, corta a cabeleira em sinal de luto.
Eh, eh, eh... que enjoo...
Então o Bobi ergueu-se e rebolou no chão
Olhou-me bem nos olhos
E sabes o que é que ele disse?
Era uma vez
Alguém me disse
(Isto é um cão a falar agora)
Qual é a tua continuidade
Conceptual
Bom, eu disse-lhe nessa altura (Disse o Bobi)
Isso deve ser fácil de ver
O enigma está
No Apóstrofo (‘)
Bom, tu sabes
O homem que estava a falar com o cão
Olhou para o cão e disse:
(Assim como quem olha desconfiado)
‘Não podes dizer isso!’
Ele disse
‘NÃO É ASSIM, E NÃO PODES!
NÃO O FAÇO, NÃO É ASSIM!
NÃO TEM, NÃO É, NEM SEQUER NÃO SERÁ
NEM DEVERIA... NEM PODERIA'
Ele disse 'NÃO NÃO NÃO!'
Eu disse-lhe 'SIM SIM SIM'
E disse ‘Faço sempre assim...
Este boogie está mesmo enrolado!’
O CANICHE MOOORDE!
O CANICHE CHUPA-O!
O CANICHE MOOORDE!
O CANICHE CHUPA-O!
Para além de outros diálogos, Fédon foi usado por Erik Satie numa cantata chamada Socrate, escrita em 1918 e apresentada no Festival Zappa Zappa’s Universe em Nova Iorque, Novembro de 1990 (Zappa não pôde estar presente por doença). É uma possibilidade para estabelecer uma ligação em “tempo real” entre Zappa e Platão, já que Zappa sempre mostrou interesse em Erik Satie. Os organizadores leram Socrate apresentando o herói de Platão a uma luz positiva, estabelecendo mesmo comparações entre Zappa e Sócrates como homens íntegros que resistiam à vulgaridade das massas. (...) Sócrates prossegue a sua argumentação dizendo que, já que a alma é imortal, a sua morte não deveria fazer com que Fédon cortasse o cabelo em sinal de luto. Há muitas outras temáticas filosóficas que revelam que Zappa é o vingador de Platão, não o seu aliado.
APOSTROPHE (‘) E REI LEAR
Apostrophe (‘) é o Rei Lear de Frank Zappa, uma obra-prima absoluta – arrepiantemente abstracto, estonteantemente inteligente e extremamente pateta. O diálogo rei/bobo em Rei Lear, famoso por equacionar verdades pungentes e loucura, é substituído pelo diálogo entre Zappa e o seu cão. Mas o humor engenhoso e vulgar do disco não conseguiu atrair a atenção nem sequer daqueles pós-modernistas que reclamam ter transposto a tradicional divisão entre elevação e frivolidade de espírito.
Temos uma paisagem gelada, desolada, um primeiro encontro que acaba em cegueira, uma meditação sobre o orgasmo e o tempo, uma recusa de Sri Chimnoy e Platão, comentários políticos sobre o movimento dos direitos do cidadão e sátiras à religião. As imagens usadas em Rei Lear coincidem constantemente com as de Apostrophe (‘). Na peça de Shakespeare, Lear diz ‘Do nada, nada pode vir’, iniciando uma série obsessiva de referências ao nada, ao vazio, ao zero absoluto. ‘És um zero sem outro algarismo’ diz o bobo. Apostrophe (‘) começa com uma série de rimas em ‘O’:
Sonhei que era um Esquimó
O vento gelado a soprar começou
Debaixo das botas e à volta do dedo grande do pé
A geada o chão mordeu
A uns cem graus abaixo de zero*
O narrador é Nannok. Nanook of the North foi um dos primeiros documentários sobre esquimós realizado por Robert Flaherty em 1920. Em ‘Nanook Rubs It’, Nanook cega o caçador de peles ao esfregar-lhe os olhos com neve colorida por urina de cão. A cegueira também é central a Rei Lear: Goneril prova a sua duplicidade ao dizer que ama Lear ‘mais do que as palavras podem exprimi-lo; mais do que a vista’. Quando Kent defende Cordélia, Lear responde ‘Sai da minha vista!’ A trágica cegueira de Gloucester é o culminar destas metáforas.
Em Apostrophe (‘) o diálogo filosófico com o cão é incitado pelo cheiro (‘Stink-foot’; ['Chulé']) A perda de visão e a confiança no olfacto andam juntas. Em Rei Lear o bobo diz:
A não ser os cegos, todos quantos seguem os seus narizes são guiados pelos olhos; e não há um nariz em cada vinte que não possa cheirar quem cheire mal.
Regan determina a cegueira de Gloucester ao dar a ordem:
Vá, ponde-o à porta e que ele encontre pelo faro o caminho para Dover.
Lear pede ao bobo que lhe descalce as botas:
Vá, vá, descalça-me as botas. Mais força! Mais força! Assim.
Depois de uma luta para retirar as botas, Zappa pede ao Bobi que lhe vá buscar as pantufas. Em Rei Lear, o Duque da Cornualha marca um contraste entre o pé (órgão de dominação) e o olho (órgão da percepção):
Vê-la, nunca a verás. Rapazes, segurai bem a cadeira.
Calcarei os teus olhos aos meus próprios pés.
Cegueira e pés: os dois princípios centrais de Apostrophe (‘).
As apresentações ao vivo de ‘Stink-foot’ incluiam uma secção dedicada à disciplina do caniche.
FZ: Bom, anda cá Bobi, anda cá Bobi. Traz-me as pantufas cachorrinho... Bobi, eu disse que me trouxesses as pantufas!
B: Oh Frank, estava tão pedrado que não as conseguia agarrar co' a boca.
FZ: Bobi, quando uma pessoa grande diz a um animal pequeno para lhe trazer as pantufas e o animal pequeno não lhe traz as pantufas isso significa que o animal pequeno deve ser punido pela mais alta Lei Imperial!
B: A sério?
FZ: Sim Bobi, tenho de te punir.
B: Magoa-me, magoa-me, magoa-me.
FZ: Está bem então.
Rei Lear também ecoa implicações filosóficas sobre o poder e dominação social.
A verdade é uma cadela que obrigam a recolher ao canil: enquanto a correm a chicote.
Quando lhes deste a chibata e arreaste os teus calções**
Já viste o cão de uma quinta ladrar a um pedinte?
E o pobre a fugir do cão?
Então aí tens a grandiosa imagem da autoridade: um cão a ser obedecido no serviço.
Eh, cobarde beleguim, abaixa a mão ensanguentada!
Porque dás chicotadas nessa prostituta?
Tira antes a pele às tuas próprias costas, pois ardes por servir-te dela naquilo que chicoteias.
Sadomasoquismo e obediência do cão: instâncias de domínio usadas como símbolo, tanto em Shakespeare como em Zappa. Em ‘St. Alphonzo Pancake Breakfast’ a bela rapariga da paróquia diz: ‘Por que é que não me tratas mal? (Magoa-me, magoa-me, magoa-me, uuuuuuh!)’
Quando Lear vai de Goneril para Regan e depois volta, a sua comitiva de cem cavaleiros é reduzida para cinquenta, vinte e cinco e depois para nenhum, é uma figura de troca com retornos diminutos. A mãe de Nanook diz-lhe:
Não sejas malandro esquimó
Poupa dinheiro; não vás a concertos
A charneca esventrada de Lear e a terra gelada, branca e devastada de Apostrophe (‘) são paisagens de um mundo de trocas, grau zero de humanidade e calor. A imagem psicoanalítica para a perda é a castração – que Freud ligou à cegueira.
Freud interpreta a mutilação dos olhos no mito de Édipo como castração (Édipo arrancou os próprios olhos por vergonha, depois de ter feito sexo com a mãe). Em Lear o bobo refere-se à castração com uma brincadeira:
Aquela que é menina e ri da minha partida, não será menina durante muito tempo, a não ser que as coisas fiquem por aqui.
O conto de Nannok que cega o caçador de peles chama-se ‘Nanook Rubs It’. Ele esfrega com um ‘movimento circular vigoroso’. À natureza reflexiva e narcisista da masturbação foi aplicada a imagética circular de ‘Disco Boy’.
Hoje é noite de amor de discoteca
Certifica-te que te vestes bem
E a cegueira é com certeza a punição tradicional da masturbação:
JOHNNY OTIS: A tua mãe não te disse que cegarias se fizesses isso? E tu não respondeste, "não posso fazê-lo só até começar a usar óculos?"
Não é Nannok que cega, claro, mas sim o caçador de peles. Contudo, como é tudo um sonho, a identidade alterna entre os protagonistas. Durante ‘Nanook Rubs It’ uma voz diz ‘Anda cá Bobi... anda cá Bobi’, o refrão de ‘St. Alphonzo Pancake Breakfast’ inclui a frase, ‘Trouxe-te os teus sapatos para a neve.’ Tudo se congela como imagem de tudo. Não é uma narrativa linear, senão uma amálgama de sintomas. O facto de reflectirem Rei Lear em cada pormenor, não é resultado do estudo de referências literárias mas sim devido à procura de uma imagética adequada aos horrores económicos e psicoanalíticos da sociedade de mercado.
‘Excentrifugal Forz’ é um ‘Trouble Every Day’ abstracto com um protagonista genital.
Vou vê-lo a polir
Aquele rubi que usa
Vai endireitar o turbante
E ejectar um esguichozinho
Para além das imagens poéticas do clitoris e do pénis, as palavras são oníricas na sua negação científica do tempo.
Vou refinar
Os modos do futuro
Porque é lá que ele tem estado
Isto parece aplicar-se à palavra de ordem ‘O futuro é feminino’ – foder como prática de clarividência e atingir o orgasmo como modo de obter um flash do futuro – criando a próxima geração.
Freud liga as mecânicas da sexualidade genital ao gelo, na sua edição de 1904 de A Psicopatalogia da Vida Quotidiana.
De um sonho de Ps parece que o gelo é, de facto, um símbolo, por antítese, da erecção: i.e. algo que fica duro com o frio em vez de – como o pénis – com o calor (a excitação). Os dois conceitos antitéticos da sexualidade e da morte estão frequentemente ligados através da ideia de que a morte torna as coisas duras.
Apostrophe (‘) é passado no Ártico e está cheio de piadas sobre masturbações e erecções. A voz calibrada de Zappa promete uma narrativa, mas a história nunca prossegue: não há moral, em vez disso, há apenas um divertido e inexpressivo malabarismo sobre alguns dos assuntos mais quentes da cultura europeia. ‘Stink-Foot’, contudo, sobe a tensão, como um sonhador a tentar formar um pensamento: parece que atingimos o cerne da questão. E claro, com uma pequena ajuda de Theodor Adorno e Platão, atingimos.
* Dreamed I was an Eskimo / Frozen wind began to blow / Under my boots ‘n around my toe / Frost had bit the ground below / Was a hundred degrees below zero.
** De facto, esta fala pertence ao bobo e não a Lear, como Ben Watson pretende.
Todas as traduções para português de Rei Lear são de Álvaro Cunhal. Edição Caminho.
‘ZOMBY WOOF’
Tal como em Uncle Meat e Ruben & the Jets se mostra que os mesmos sons podem revelar tanto abstracções de vanguarda como uma ‘simplicidade imbecil’, a introdução de ‘Zomby Woof’ – que é uma canção rock ostensivamente obscena – é tão estonteantemente complexa como qualquer tema de Waka/Jawaka. Faz uso de secções breves de material contrastante que parecem dar aos músicos um caminho cheio de obstáculos para percorrer, alternando metais de R&B com trompetes de jazz ligeiras e untuosas (e uma melodia atonal complexa). Colagem de elementos contraditórios. Como de costume, também, ‘Zomby Woof’ perpetua conscientemente uma tradição, desta vez na veia de canções ameaçadoras e demoníacas como ‘The Wolf Is At Your Door’ de Howlin’ Wolf (na verdade, o próprio canta o seu nome de maneira a que soe como ‘woof’; o refrão ‘reety-awrighty’ faz referência à rotina de Joe Turner). Overnite Sensation foi misturado e lançado originalmente em quadrifonia (o passo à frente do estereo que nunca se impôs). A voz de Ricky Lancelotti deveria vaguear por todo o espaço sonoro. O Zomby Woof é o pesadelo de um morto-vivo, com o ladrar de cão incorporado no nome. O woofer (oposto ao tweeter) é o componente grave de um altifalante: a canção também é um comentário à divisão sexual da tonalidade..
Apesar do ritmo desenfreado da música de ‘Zomby Woof’ o baterista bate nos pratos apenas uma vez por compasso, no sítio mais inesperado. O solo de guitarra de Zappa é do seu estilo mais contorcidamente orgânico, uma confusão eléctrica convulsiva e distorcida; os teclados de George Duke deslizam livremente nas suas sugestões. A qualidade de banda-desenhada da letra podem levar-nos a esperar uma rockalhada fácil e directa, mas se prestarmos atenção aos instrumentos no solo, o baixo e a bateria não param de aparecer nos sítios mais inesperados (tal como o Papão!): um arranjo único. As bandas de rock e jazz trabalham normalmente na direcção das suas químicas especiais, intuitivamente: por contraste, Zappa é extremamente deliberado. Cada melodia tem o seu conteúdo bem distinto. As suas direcções perversas colidem com o fantástico sentido de swing dos músicos. Duke usa um clavinet à la ‘Supersitition’ para a reentrada da voz, enquanto o violino amplificado de Jean-Luc Ponty sobrepõe a sua tinta particular.
Os anos de experiência de jazz de George Duke dão uma grande elevação aos solos. A sua musicalidade funky adiciona uma fluidez à música de que se sentiu muita falta nas bandas dos anos 80 de Zappa. Duke também era bastante divertido, como provou na sua rotina famosa dos ‘finger-cymbals’, onde contava piadas sobre os membros da banda e papões. Na mistura do CD de Overnite Sensation, o baixo de Tom Fowler ficou mais presente, uma mistura de flexibilidade e força firme e redonda. A sua linha de baixo ‘country’ em Montana é estonteante. Em ‘Fifty-fifty’ ouvem-se os únicos solos: o de George Duke é maravilhoso, audazmente inventivo; o violino de Jean-Luc Ponty, a derreter-se, é o equivalente auditivo perfeito para a porcaria viscosa que Cal Schenkel desenhou no interior da capa do disco; Zappa começa aqui a sua conquista de um som de guitarra da alta tecnologia, inundando a sua lógica linear com efeitos borbulhantes.
Uma nova descoberta – feita por Zappa num bar no Havai – foi o saxofonista Napoleon Murphy Brock. Fantástico bailarino, flautista e cantor espantosamente elástico, a espontaneidade de Brock e o entusiasmo marcaram indelevelmente a música de Zappa nos anos que se seguiriam.