Os UHF foram um dos primeiros grupos de rock que eu idolatrei. Foi há cerca de trinta anos. (Quando digo isto até me arrepio. Podia ter sido ontem.) Eles perderam fulgor durante os anos 80, mas seria nos anos 90 que se tornariam insuportáveis. Com as intermináveis versões de canções de Zeca Afonso e populares, álbuns de António Manuel Ribeiro a solo, condescendentes, sem qualquer chama. A vida já não entrava na música deles. A música deles já não entrava na minha vida. Apenas uma nostalgia, o passado. Ninguém vive só do passado.
Curioso e contraditório é que os poemas das músicas deles dos primeiros tempos falam disso mesmo. De agarrar o momento, da vitalidade do gesto, da denúncia. Quando eles congelaram no tempo nem sequer chegou a ser doloroso, foi apenas patético.
Há poucos dias, ouvi mais uma vez os discos que conservo deles, nas cassetes que a minha mãe me foi oferecendo. À Flor da Pele, Estou de Passagem, Persona Non Grata, Ares e Bares de Fronteira. O primeiro é o mais interessante, ainda hoje, a nível musical. Simples, com o baixo de Carlos Peres em posição de destaque. As melhores músicas são conduzidas por ele "Anjo Feiticeiro"; "Ébrios (pela Vida)". A segunda manteve-se num top de um programa de rádio, que já não me lembro o nome, uma coisa impossível, porque, tirando essa ocasião, nunca tinha ouvido a música na rádio. Está claro que éramos nós, os fãs incondicionais que ligávamos para lá. O nosso grupo era os Papuntasistula. Que segundo Jim Morrison significa "um grande caralho vermelho". O locutor interrogava-se em directo que raio quereria aquilo dizer. Nós sorríamos em casa. Nunca desvendámos o mistério. Era mais divertido assim.
Os dois discos seguintes mostram algum desenvolvimento nos arranjos, mas as músicas começam a ter muito pouco sumo para além das letras. O último disco é o mais conseguido. "Devo Eu" será sempre um hino dos UHF.
Mais tarde, António Manuel Ribeiro gravou Noites Negras de Azul, com outros músicos. O resultado foi uma evolução francamente positiva. Mas a personalidade depressiva do vocalista deu cabo dos seus próprios projectos.
Quando os vejo hoje em dia só distingo fantasmas.
Aquilo que me ficou dos UHF, aquilo de que ainda gosto é da poesia de António Manuel Ribeiro. Talvez o melhor poeta da música portuguesa dos anos 80.
CONCERTO
Dedos amarelos
Afinados em dó maior
Cigarros de ponta breve
Espalhados no auditório
Luz que entra pelas alturas
E conduz à histeria
Olhos fixos à procura
Do profeta da rebeldia
Soutien preso à pele
Entre os amigos gritando
Corpo aberto à ternura
Da música deste concerto
Bem bebidos de brilho nos olhos
Avançaram sedentos
Exigindo matar a fome
Pelo preço de um bilhete
Angústias ou ramos de flores
Suando sangrando
Eu sei lá
Ouço palmas uivos
Risos brancos sinceros
No caudal que se vai
E o rio está seco
O concerto no fim
Regressemos à sobrevivência...
A primeira vez que peguei numa guitarra foi cerca dos oito anos. Lembro-me de ter sido um acto de transgressão, a guitarra não era minha e o dono não estava presente. Mais tarde aprendi que essa é uma das coisas que não se devem fazer aos músicos. Mas o que é que eu sabia? Nada.
Aliás, esta atracção permaneceu quase inalterável. Os instrumentos exercem um tremendo fascínio sobre mim. Sempre que vejo um instrumento tenho sempre de me refrear para não lhe tocar. Acho que foi esta curiosidade que me levou a tocar guitarra.
Quando toquei numa guitarra eléctrica pela primeira vez, adoptei-a. Pedi-a logo emprestada ao amigo. Que não achou graça nenhuma, embora ma tenha emprestado por uma semana. Daí até às guitarras do meu tio, foi um pequeno salto. Ou seja, as minhas primeiras três guitarras, não eram minhas. E mesmo quando comprei o meu primeiro baixo tive de pedir o dinheiro emprestado ao Rui. Eu já estava a trabalhar nessa altura, por isso podia pagar-lhe com o meu ordenado. Sempre tive esta sensação de que estava a transgredir a música. Eu não pertencia ao mundo da música, mas mesmo assim impunha-me. Era mais forte que eu.
Quando comecei a aprender a sério (a sério?) a tocar, limitava-me a saber afinar a guitarra. Sacava melodias de ouvido, escrevia a tablatura num código secreto que mais ninguém entendia e ia reunindo pautas (queen, pink floyd, genesis) que começava a ler, embora soubesse apenas os rudimentos mais básicos. Foram pelo menos cinco anos de prática caseira, solitária e ociosa, quase diária, a ansiar pelos ensaios de fim-de-semana.
Eu já tinha começado a trabalhar no teatro, eram digressões intermináveis pelos concelhos de loures, vila franca de xira, amadora e sobral de monte agraço. Carregar cenários, montar luzes, fazer espectáculo, desmontar, carregar, descarregar e voltar para casa, mais uma hora e meia de transportes, etc.
Os momentos de descoberta ficavam para o fim-de-semana onde tocávamos as nossas músicas - first ride do ricas, sobre um gajo que se iniciava no cavalo, e os covers de imagine, with a little help from my friends, rolling stones e santana, versões esquisitas de tudo, ninguém sabia cantar, quase ninguém sabia tocar, mas prosseguíamos assim, sem mais nada senão os sons.
Mais tarde, fui para o hot clube e senti-me muito inseguro, só durei um trimestre. Só chumbei a treino auditivo, mas as humilhações que passei com um professor imbecil fizeram-me nunca mais lá voltar. Guardo algumas boas recordações, as aulas com o ricardo e com o pedro moreira eram óptimas. A propina era caríssima também, e eu nessa altura já tinha uma filha. Tudo pesado, segui no teatro e continuei a tocar música aos fins-de-semana.
Mas uma coisa é tocar, outra é ouvir.
Quando cheguei ao hot eu já conhecia jazz e gostava de o tocar. Desenvolvia uma parte de mim, permitia-me uma descoberta grande, aprendia a confiar, nos outros, em mim, atirar para trás os medos. O jazz é isso, a libertação dos medos, se não for isso então não é praticamente nada.
Esta aproximação pela prática, à música, foi primordial para eu perceber o que realmente é a música. Só tornei a ter a mesma sensação quando toquei com o Pedro Leal nos Des Maisons. Uma sensação de organização delicada, sensível e transcendente.
Agora tenho um novo projecto, мир, com o Chico, o baterista, o estúdio está a ficar pronto. O próximo passo é gravar uns temas e ver o que as pessoas dizem. Não temos medo. Como diz o Kurosawa "Se não criares o hábito de mentir ao público, podes confiar nele."
Frank Zappa passou a ser a minha referência principal no que se referia à música. Quanto mais discos conhecia mais me convencia que não havia ninguém que se lhe pudesse equiparar. É difícil alguém reunir na música aquilo que ele conseguiu fazer: composições orquestrais arrojadas com humor brejeiro, apontado a uma sociedade injusta e corrupta, melodias arrebatadoras escondidas atrás de arranjos raros, ritmos assimétricos carregados de drama, era tudo o que eu podia querer da música.
O que eu conhecia não estava muito longe da música de Zappa, mas faltava-lhes sempre qualquer coisa. Ou era a monotonia ou o conformismo do rock progressivo, a inércia que o havia de matar, ou era antes a irreverência pueril do heavy metal ou do hard rock que simplesmente me fazia sorrir. A música clássica resumia-se a algumas aberturas das óperas de Wagner ou à nona sinfonia do Beethoven que eu idolatrava. O jazz ainda não era um terreno completamente desbravado, eu prosseguia com calma.
A Feira da Ladra era o sítio onde nos reuníamos para comprar discos. Eu ia com o Arnaldo, aos sábados, vender roupa velha, coisas inúteis, esperando fazer algum dinheiro que nos permitisse comprar ainda alguns discos.
Um dia, ficámos naquele largo por cima do mercado, chegámos muito cedo, com o frio, suportámos os compradores de livros da colecção vampiro que nos abordavam como um enxame de abelhas e preparámo-nos para mais uma manhã a olhar para as miúdas que já lá estavam e a conversar sobre tudo e nada: uma das melhores coisas que há para fazer na vida. A certa altura parou uma carrinha atrás de nós, coberta de poeira. Preparava-se para assentar arraiais mesmo ao nosso lado. Era costume. Eles tinham o lugar marcado. O Arnaldo, como verdadeiro pacifista, correu para perpetuar qualquer coisa na poeira da carrinha. Estendeu o dedo, deslizou-o na chapa velha e desenhou um belo símbolo da paz. As coisas que fazemos quando somos novos e ingénuos. Sorrimos um para o outro, cúmplices e deitámos o olho às miúdas para ver se elas tinham visto como nós éramos sensíveis. Elas não tinham visto. Sentámo-nos à espera de melhores vistas.
Depois só me lembro de ver um bruta-montes a gritar virado para nós. Eu levantei-me como um raio. Quem era ele? Ah. Era o dono da carrinha. Eu esbocei um "mas nós...", mas ele não quis saber. Qaundo dei por mim tinha a cara feita num bolo. O Arnaldo tinha fugido, não sei se já estava à espera ou se simplesmente teve sorte. Eu fugi, sem saber o que me tinha acontecido. Cheio de raiva pela injustiça, lembro-me de ouvir o cigano a murmurar por entre dentes "vêm práqui fazer publicidade a nã sei quê!" Publicidade, claro. Daquela troglodita só podia sair qualquer coisa do género. A um comerciante de malas e outros produtos de couro só podia passar pela cabeça a publicidade. Claro. Para mais estávamos no final dos anos 80. A economia não podia parar. As pessoas andavam todas ocupadas a encher a pança - como o Sancho.
Foi a última vez que ficámos naquele sítio da Feira. Quando lá íamos depois, não podíamos deixar de passar à frente da barraca dele, só para lhe ver as trombas sem ele nos reconhecer e imaginar que lhe punhamos fogo ao arraial. Mas lá está. O símbolo da paz que tínhamos grafitado com o dedo na carrinha dele estava gravado a pedra no nosso coração. As acções ficam para quem as pratica.
Depois do desafio do Marco do Bitaites fiquei a cismar naquelas que podiam ser as minhas sete canções da vida. Decidi não escolher as melhores sete canções da minha vida, seria impossível empreender tal tarefa. Por isso, pensei naquelas que terão sido as mais significativas. Desde as primeiras coisas que ouvi e me fizeram gostar de música até àquelas que me abriram as portas de outros mundos.
Começando pelo princípio devo dizer, para minha vergonha, que a primeira música de que me lembro de pensar: "eu gosto realmente desta música", foi a balada dos Bee Gees "How Deep Is Your Love?" Cada vez que a ouvia na rádio (que era a única maneira de ouvir música nesses tempos porque não tinha gira-discos nem gravador de cassetes) arrepiava-me todo, como quando acontece com uma música que nos toca "daquela" maneira. Era uma coisa emocional fortíssima que eu não podia ignorar. Mais nada me fazia sentir "daquela" maneira.
Passariam alguns anos, talvez dois, até descobrir os meus dois grupos preferidos. Os Queen e os Police. Dos primeiros ouviria até à exaustão em casa do Pedro os discos The Game e Live Killers e depois aos quinze anos 'Radio Gaga'', os segundos seriam a minha banda de eleição: principalmente o álbum Zenyatta Mondata que ouviria centenas de vezes durante os próximos meses. A canção que me fazia parar o coração não era 'Don't Stand So Close to Me' mas sim 'Canary in a Coalmine'. Lembro-me de emprestar a cassete (original) do disco, ao Miguel Sotero (isto é só para quem conhece) e de ela ficar com uns cortes na gravação, cortes esses que durante muitos anos iriam fazer parte da maneira como eu conhecia as canções. De tal maneira que, anos mais tarde, quando as ouvi sem os cortes me pareceram paradoxalmente estranhas.
Pelo meio, lembro-me de a minha avó, me oferecer, no Natal de 1980, um gravador de cassetes, daqueles que mais tarde seriam usados para loadar " " jogos no spectrum, no qual ouvia 'De do do do de da da da' até à a minha mãe entrar em parafuso. Outra música da minha vida foi 'Another Brick in the Wall' dos Pink Floyd. Eu frequentava a escola preparatória em Cascais, tinha dez anos, e lembro-me do toque da saída das aulas despoletar os nossos gritos de revolta "Hey teacher, leave the kids alone!" Os professores riam-se das nossas precoces preocupações libertárias.
Seja como for, estávamos no princípio dos anos 80, o boom do rock português no seu auge, eu ouvia UHF ('Cavalos de Corrida'; 'Rua do Carmo'), Táxi ('Chiclete'; 'TVWC'; 'Às dos Flippers'), Rui Veloso ('Chico Fininho'; 'Rapariguinha do Shopping'), Xutos e Pontapés ('Sémen'; Toca e Foge'; 'Leo'), Iodo ('Malta à Porta'), o programa da rádio 'Rock em Stock' do António Sérgio onde apanhávamos as coisas mais esquisitas: Street Kids; Arte e Ofício; Roxigénio, Grupo de Baile. Eram tempos gloriosos, quando tudo parecia possível na música portuguesa. Lembro-me dos Tantra com o álbum Humanoid Flesh, que anos mais tarde se tornaria insuportável face às loucuras dos dois primeiros discos deles, absolutamente maravilhosos: Mistérios e Maravilhas e Holocausto.
Seguir-se-iam anos de inanidade com os Duran Duran (nem sei como é que a minha mãe me conseguiu aturar...), os Classix Nouveaux, os Spandau Ballet, os Human League e outras bandas mais ou menos estúpidas, ah, os Soft Cell, que coisa parva! Os dias eram passados a sintonizar rádios e a preparar cassetes virgens para gravar o que passava, à espera que o locutor não cortasse muito as canções com os seus comentários sempre na pior altura.
Só anos mais tarde, em 1985 ou 86 talvez, eu conheceria o Arnaldo que mudaria de forma radical o meu gosto musical. Ele era um assíduo dos concertos dos UHF, como eu, mas também fã incondicional dos Queen (olha quem!). Seria ele a introduzir-me a um novo género de música: o rock sinfónico. E a partir de um disco extraordinário, que ainda ouço hoje com prazer - Moonmadness, dos Camel -, começou a minha loucura. 'Song Within a Song' desse disco revolucionou por completo os sons que estavam na minha cabeça.
A par com os Camel viriam os Genesis da primeira fase (outra revolução), os Pink Floyd de todas as fases, incluindo os discos com o Syd Barrett (que passaram, nessa ocasião, na íntegra num programa da Rádio Marginal, quando ela ainda era pirata, sugeridos por mim - o que foi um grande orgulho!), os Yes, King Crimson, Gentle Giant (ódio de estimação e chacota de muitos dos meus amigos com ouvidos menos sensíveis para música medieval), Jethro Tull, Van Der Graaf Generator, Barclay James Harvest, Moody Blues, Emerson, Lake & Palmer, Marillion, Soft Machine, e muitos outros mais ou menos obscuros. Lembro-me de fazer um caderninho onde conservava, como a ajuda do Arnaldo, toda a discografia de cada um destes grupos, com as várias formações das bandas... o tempo que eu perdi a catalogar todas estas coisas...
No final dos anos 80, eu estava já quase desiludido com tudo. Com a escola, o governo, o ambiente em casa, e a música entrava num beco sem saída. Precisava de qualquer coisa de radical, urgente. E não é que apareceu? Foi o jazz, ou melhor, os concertos na Festa do Avante a ver grupos de jazz-rock da antiga URSS, como os Allegro, por exemplo, que me levaram a, não só, ouvir jazz, como a apreciar músicas alternativas, desde que não houvesse a merda das baterias electrónicas a fazerem "ptcha! ptcha!", tudo bem. Foi por esta altura que me deparei com mais um disco que mudaria mais uma vez a minha cultura musical. Tratou-se de Live in New York de Frank Zappa, e em especial, o tema 'Titties & Beer' que eu rapidamente absorvi como uma esponja. Em breve seria todo o disco. Algumas semanas mais tarde estava na Feira da Ladra a comprar tudo o que pudesse dele. O disco seguinte foi One Size Fits All, e pronto, estava rendido.
Descobriria o jazz mais a fundo logo a seguir. Os primeiros discos de que me lembro de venerar seriam Black Codes e Standards vol. 1 de Wynton Marsalis.
Daí para cá, aprendi a tocar guitarra e baixo, comprei um piano assim que pude, frequentei o Hot Clube de Portugal durante pouco tempo (o suficiente para saber os rudimentos do jazz) e descobri alguma música clássica que me interessa verdadeiramente: Stravinsky, Nono, Ligeti, Beethoven, Bartók.
A música, para mim, é tão importante como o ar. Sem ela a vida na terra seria bem mais triste.
Por tudo isto a minha lista fica assim:
1. How Deep is Your Love - Bee Gees
2. Canary in A Coalmine - The Police
3. Don't Stop Me Now - Queen
4. A Rapariguinha do Shopping - Rui Veloso
5. Song Within a Song - Camel
6. Titties & Beer - Frank Zappa
7. Cherokee - Wynton Marsalis