O dia começou com um telefonema da minha mãe. A minha avó paterna tinha morrido. Gostaria que estas coisas não fossem assim, não tivessem de ser por telefone. Devia haver uma expressão, um olhar, um silêncio qualquer, uma música, algo de menos impessoal. Mas, foi assim que soube.
A notícia era esperada, há algum tempo que a minha avó tinha deixado de viver. Há um ano e meio que não reconhecia ninguém para além da minha tia manuela - coisa que ela refere sempre com orgulho. Esta senhora que viveu quase 95 anos, que faria no mês que vem, não teve problemas de saúde até aos 93 anos de idade. Aos 40 anos começou uma dieta rigorosíssima. Não comia senão pão do dia anterior, bebia sempre água morna e só comia cozidos e grelhados. Com uma parcimónia e disciplina que nos exasperavam. Lia o jornal, discutia política, embora não fosse perfeita (como muitas das pessoas da sua idade, o seu estadista preferido era salazar). Com cerca de 85, 90 anos começou a comer de tudo, como se se quisesse desforrar daquilo que tinha perdido durante tantos anos. Era uma senhora peculiar.
Uma mulher de pêlo na venta. Viveu quase metade da vida na província. O nome dela revela a sua ascendência árabe. Teve sete filhos, dois dos quais morreram quando eram novos. Ficaram três mulheres e dois rapazes. O meu pai e o meu padrinho. O marido morreu em 1974 com cancro quando eu tinha cinco anos.
Ferranha do Sporting, foi ela a responsável por eu ter desobedecido ao meu pai neste assunto melindroso do futebol: ele era do Benfica. Mas ela era demasiado forte para o meu pai a querer contrariar nesta questão. Juvenis, juniores, hóquei em patins, futebol, ginástica, a tudo ela assistia, às vezes comigo e com o meu primo, com uma verve e um fanatismo só comparáveis a uma claque. Viram alguma vez uma velha de 60 anos em Alvalade a chamar nomes aos árbitros de cachecol ao pescoço e bandeirinha na mão? Era a minha avó.
No final da vida limitava-se a estar sentada no melhor sofá da sala de jantar da casa dos meus pais e assistia assim aos natais e páscoas, imobilizada pela perna partida que teve de carregar durante vários anos. Nessa idade ficou terna e querida como uma verdadeira avó. Distribuia beijos a cada prenda ou piropo que recebia.
Olhava toda a azáfama desses momentos em silêncio, um silêncio penetrante, quase alheado. Não se dirigia a ninguém. Algo a comia por dentro. Todos suspeitávamos o que era. Mas ninguém o verbalizava. Era o joão pedro, o seu neto/filho que tinha morrido - nunca ninguém lhe tinha dito o que acontecera. Aquele que ela tinha educado durante tantos anos partira sem dizer adeus. Mas ela sabia que ele já não estava entre nós. E nunca disse nada. Nunca perguntou por ele e nunca ninguém lhe contou. Era desta massa que ela era feita. Suportou a dor de saber o seu filho morto sem um ombro onde chorar, sem um consolo de familiar. Dói-me saber que era isto que a comia. Mas todos a quiseram poupar a essa miséria de saber que o seu neto/filho se tinha passado para os confins do tempo.
Agora já sabes minha avó, deves estar com ele em algum sítio.
O velório foi a ocasião para ver toda a família junta. Os primos também. Alguns que vi, outros que lembrei, como o joão pedro que recordei com saudade com o gonçalo. Falámos daquelas memórias de elefante, dos momentos únicos, de maternidades e funerais e dos tempos em que brincávamos juntos. Fazem bem estas coisas.
As tias consolámo-las à vez. Era um choro profundo. Um choro de avós pela sua mãe. Um choro convulsivo mas na sua exacta proporção. Um choro de gente crescida, sábia, anciã.
Todos os dias aprendemos coisas, umas melhores outras piores, umas mais óbvias, outras menos. A de hoje foi simples e sempre esteve ao meu alcance: o nome completo da minha avó: Alzira Costa Marques.
24/2/1914 - 27/1/2009.
Até sempre vó.