O primeiro olhar amoroso é a distância mais curta que há entre dois pontos, essa divina recta que não tem igual.
Para que as pessoas se compreendam umas às outras, é necessário que caminhem ou se deitem uma ao lado da outra.
Se entrasse agora e dissesse "vou-me embora por muito tempo, para sempre", ou: "parece-me que já não te amo" creio que não sentiria nada de novo: de cada vez que se vai embora, cada hora que não está - não está para sempre e não me ama.
A traição já caracteriza o amor: não se pode trair um conhecido.
Nos meus sentimentos, como nos das crianças, não há graus.
Oh, poetas, poetas! Os únicos verdadeiros amantes das mulheres!
Marina Tsvietaeva, Indícios Terrestres, 1917.
Aquele que abraça uma mulher é Adão. A mulher é Eva.
Tudo acontece pela primeira vez.
Vi uma coisa branca no céu. Dizem-me que é a lua, mas que posso eu fazer com uma palavra e uma mitologia.
As árvores metem-me um pouco de medo. São tão belas.
Os tranquilos animais aproximam-se para que eu lhes diga o seu nome.
Os livros da biblioteca não têm letras. Quando os abro irrompem.
Ao folhear o atlas projecto a forma de Samatra.
Aquele que acende um fósforo no escuro está a inventar o fogo.
No espelho há um outro que espreita.
Aquele que olha o mar vê a Inglaterra.
Aquele que profere um verso de Liliencron já entrou na batalha.
Sonhei Cartago e as legiões que devastaram Cartago.
Sonhei a espada e a balança.
Louvado seja o amor em que não há possuidor nem possuída, mas em que ambos se entregam.
Louvado seja o pesadelo, que nos revela que podemos criar o inferno.
Aquele que desce um rio desce o Ganges.
Aquele que contempla uma ampulheta vê a dissolução de um império.
Aquele que brinca com um punhal pressagia a morte de César.
Aquele que dorme é todos os homens.
No deserto vi a jovem Esfinge, que acabam de construir.
Não há nada tão antigo sob o sol.
Tudo acontece pela primeira vez, mas de maneira eterna.
Aquele que lê as minhas palavras está a inventá-las.
Jorge Luís Borges, Cifra (1981), Círculo de Leitores. Tradução de Fernando Pinto do Amaral.
Abatam as juras de amor
falsas como o vento
valem a cor fogosa de uma erupção.
O único momento de límpida honestidade:
quando acordas em meus olhos.
Se sim
os teus cabelos desgrenhados são a coroa
da rainha do meu sangue.
António Bento, Fragmentos. Pé de Página.
Acabei de entrar nos "entas". Estou feliz.
A partir daqui é que vai ser bom. É o que se diz.
Outros dizem, o que foi bom, já passou.
Mas para quem a vida foi sempre a viver
Tanto faz o que ainda não acabou
E o que falta para morrer.
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner, Obra Poética III. Editora Caminho.
Minha puta
meu coração
Amo-te como quem caga
Empapa o cu na tempestade
rodeada de relâmpagos
É o raio que te fode
brada na noite um louco
entesoado como um cervo
Ó morte o cervo sou eu
devorado pelos cães
A morte ejacula em sangue
George Bataille in Qual É a Minha ou a Tua Língua. Assírio & Alvim.
É o amor. Preserva as tuas entranhas,
porque a paixão não é fácil,
e tudo o que se elege se consome,
ainda que tenha razão.
Vive livre dele,
porque a calma do amor é a fadiga,
indisposição o seu começo, e morte o seu final.
Para mim, sem dúvida,
o morrer por amor é um viver,
e o favor o devo àquele que amo.
Dou-te estes conselhos
porque conheço muito bem o que é o amor.
Mas se tu preferes contradizer-me,
escolhe o que muito bem te agradar.
Se desejas viver prazenteiramente
morre mártir por ele; se não o fizeres,
o amor tem já a sua própria gente.
Quem não morre de amor, por ele não vive.
E o mel não o podes colher
sem te expores às picadas das abelhas.
Ibn Al-Farid, Qual É a Minha Ou a Tua Língua? Assírio e Alvim.
A tarde avança em rios de chap-chap
Dispo a roupa
Revelo os meus ossos
O nome arde-me no cérebro
Tira-me do sério
A loucura é ao virar da esquina
Resta-me a beleza de uns olhos
A tirania desse fascínio
O gozo da faca no flanco
Da velha e vibrante vertigem do vermelho
Da carne branca e leve como uma vela
Do silêncio alto e serôdio de uma nuvem
Um traço de cinzento no fim da tarde
O eco dos pingos no chap-chap do pátio
Abre-me ao meio, fixa-me no tempo que tenho
A única coisa que é realmente minha
Se ao menos soubesse o que fazer com ele...
A minha cabeça revolve a areia do passado
Num turbilhão generoso e calmo
É o frio que me sobe pelos ossos amarelos
Mordo a memória movediça dos teus passos
Passo ao lado da praia de verão onde
A lua iluminava os nossos sexos expostos
Vejo corpos, uivos, segredos sinceros
A eternidade acena-me com o seu pano esfrangalhado
De um sorriso terno e rectificador
Eu dirijo-me para ela
Certo do dever cumprido
Eu, o traidor de mim próprio
O homem do gesto adiado
Do grito sempre pronto
Um megafone do destino
Rouco como um cantor de blues
Improvisado nas veias de um tempo já morto
Guardado na aldeia do meu cérebro
Aprende as boas artes, esse é o meu conselho, ó juventude de Roma,
e não apenas para defender réus temerosos;
tal como o povo e o juiz severo e os eleitos do senado,
assim também a mulher, vencida, há-de render as mãos à tua eloquência.
Deixa, porém, a força a bom recato e não mostres um ar confiante;
arreda da tua conversa palavras enfadonhas.
Se não for falho de juízo, quem se põe a discursar diante de uma amante delicada?
Muitas vezes uma carta foi sério motivo de má vontade.
Usa linguagem credível e palavras comuns,
embora delicadas, por forma a parecer que estás ali a falar, em pessoa.
Se não receber a tua mensagem e a devolver sem a ler,
mantém a esperança de que venha a lê-la e conserva o teu propósito.
Com o tempo os bezerros rebeldes afeiçoam-se ao arado,
com o tempo os cavalos aprendem a suportar a dureza do freio;
a anilha de ferro vai-se gastando à força do uso;
a relha recurva da charrua fica corroída, de tanto mergulhar na terra.
Que é que existe mais rijo do que a pedra, mais mole do que a água?
a pedra dura, porém, é escavada pela água mole.
(...)
Se te ler e não quiser responder, não a forces;
procura, apenas, que leia as tuas palavras delicadas até ao fim;
se quis ler, há-de querer responder ao que leu;
a resposta chega com o seu ritmo e seu passo;
talvez te chegue, primeiro, uma carta triste,
a pedir-te que não mais a procures;
se pede, é porque receia que não aconteça; se não pede deseja que insistas.
Prossegue! Bem cedo verás realizado o teu desejo.
Arte de Amar, Ovídio. Tradução de Carlos Ascenso André. Biblioteca Editores Independentes, 2008.
Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.
Jorge Luís Borges, in Fervor de Buenos Aires, Obras Completas. Edição Círculo de Leitores. Tradução de Fernando Pinto do Amaral.