Numa entrevista à Telos, a revista trimestral americana da escola marxista de Frankfurt, perguntaram a Zappa se fazia alguma distinção entre arte superior e arte inferior. Ele devolveu a pergunta: “Ou, entre qualquer tipo de arte?”[1]
Esbater a distinção entre arte e vida tem sido uma atividade americana desde Walt Whitman, pelo menos, que exprimia o seu mal-estar com um honroso, embora insuflado, estatuto que era concedido à arte da sociedade desse tempo. Isto explica a aparente contraditória combinação de disciplina e acaso na música de Zappa. “Esta gravação tem de ficar com todas as notas certas”,[2] juntamente com o “Que se foda”.[3] O acaso assinala a entrada do real no projeto. Tal como um surrealista que retrata a Europa devastada antes do começo da Segunda Guerra Mundial,[4] Zappa mistura elementos do mundo real de tal forma que a sua arte se torna microcósmica. Analisa a substância das coisas muito mais profundamente do que a informação real do mundo, o seu passado e o seu futuro. Desde James Joyce que ninguém tentava demolir as barreiras entre arte e vida com um fervor tão produtivo.
Ao falar de arte levantamos a questão da sua definição. Para os marxistas, a arte é o estádio a meio-caminho da burguesia – a meio caminho entre a pompa religiosa do feudalismo e a permanente recriação da vida quotidiana que caracterizaria a sociedade pós-bens-de-consumo. Antes do aparecimento da classe burguesa, os trabalhos artísticos – histórias de aventuras, ocasionais retratos, partituras para alaúde e viola de gamba – não eram investidos com o significado pessoal dado à arte pelos românticos. Se se tivesse incertezas metafísicas, ansiedade sobre o lugar da alma no esquema cósmico das coisas, consultava-se um especialista: o padre. A religião detinha o monopólio dessa faculdade, classificando e castigando como heresia as referências diretas à Bíblia (ou a Deus). Em 1789, a revolução francesa mostrou como a religião apoiou a velha ordem: na fase revolucionária, a burguesia não queria nenhuma das velhas hierarquias do feudalismo e da fé. Ela exigia uma imagem racional do mundo. Quem sondaria agora as profundezas da alma, quem mediria o pulsar de uma vida “interior”? Os poetas e os pintores deram um passo em frente.
A arte foi o substituto da religião, um repositório de valores mais “elevados” que aqueles de fazer dinheiro. As implicações reacionárias deste tipo de idealismo podem ser percebidas (de forma desviada) pelo tom triunfante do senador Paula Hawkins quando, no Senado, fez uma pergunta a Zappa sobre lucros.
PH: O senhor obtém lucros com estes discos de rock?
FZ: Sim.
PH: Obrigado. Acho que esta declaração já diz qualquer coisa ao Comité.[5]
Ao mesmo tempo que a indústria discográfica se deixa censurar, em troca de legislação que reúne dinheiro ao criar um imposto para determinadas gravações, um artista que diz que tem lucro é crucificado. A mesma declaração que devia alinhar Zappa com os interesses económicos da classe dirigente americana é apresentada como prova da sua inutilidade como artista e a sua falência moral como cidadão.
Tais declarações são parecidas com as condenações da esquerda, porque também ela moraliza contra a obrigação de fazer lucros. As estéticas de esquerda sofreram um grande revés desde os dias em que Leon Trótski se correspondia com André Breton sobre as implicações revolucionárias do surrealismo. As dialéticas negativas das habilidades do caniche não têm tempo para as assim chamadas críticas de arte marxistas que meramente completam as altas pretensões da burguesia liberal. Gostar de arte sob o capitalismo é o mesmo que nos divertirmos com a contradição; a outra opção é passar a vida a ler livros de Percy Shelley. Para escárnio dos que impedem a combinação que fazemos entre políticas leninistas e a zappologia, as dialéticas negativas reafirmam um ponto: a arte de Zappa, embora necessariamente colada a uma crença pequeno-burguesa das indústrias caseiras, faz parte de um protesto contra as divisões da sociedade capitalista tanto quanto a música de Charlie Parker ou Kurt Weill. Os que reduzem o marximo a moralidade – um conjunto de palavras-chave que nos separam do resto – arruinaram as dialéticas e impediram qualquer compreensão da indústria cultural. São os mesmos avarentos que disseram que a esquerda devia ignorar o punk. A arte não é simplesmente a representação de aspirações que serão julgadas pelas sua validade. É em si mesma um processo material. Isto cria problemas à ideia de arte como repositório dos chamados valores não-materiais “elevados”. Durante o século dezanove, o próprio desenvolvimento técnico atirou essa ideia para uma crise. À medida que os românticos espremiam cada vez mais expressão pessoal das velhas formas – cromatismo e dissonância na música, simbolismo na poesia, pinturas sobre pintura – alargavam o alcance de conhecimentos artísticos, mas perdiam público. Nas décadas 10 e 20 do século XX o modernismo artístico pressagiou uma nova era na qual não era exigida representação porque a humanidade estava ativamente a construir o mundo – a promessa da revolução russa. Branco em Branco de Casemir Malevich era um objeto no meio do próprio mundo e não uma janela do mundo que ficava para além do antagonismo entre o eu e a sociedade. A sociedade era agora a galeria onde a arte devia operar. À medida que as vitórias da revolução de 1917 recuavam, tais recusas de divisão da sociedade capitalista passaram a não ser bem vindas. No Ocidente, a distância entre trabalhos artísticos modernos e a vida da maioria da população era exibida como evidência da estupidificação massiva; sob o comunismo eram completamente banidos.
A contra-revolução de Estaline suprimiu o poder aos trabalhadores em nome da ideologia “socialista” e instituiu o socialismo realista, um retorno às formas do século dezanove, com uma cláusula para contentamento. O modernismo tornou-se a má consciência do regime. Ao mesmo tempo que Estaline limpava todo o pessoal do comité central bolchevique e os artistas abstratos eram perseguidos e confinados a asilos para loucos.
Sem surpresa, os Estados Unidos viram que podiam promover a arte abstrata em nome da liberdade e empreendimento. Quando Jasper Johns exibiu bandeiras americanas em galerias de arte, um gesto patriótico que não podia ter sido feito mais estrepitosamente, a ação foi explicada por Clement Greenberg como sendo um passo em frente na misteriosa discussão da insipidez da pintura plana, uma dialética que pretendia ignorar todas as políticas da guerra fria. A retrospectiva de Jasper Johns na Galeria Hayward em Londres, em 1991 – no pico da Guerra do Golfo – foi financiada pela Texaco, uma das empresas de petróleo americanas cujos lucros eram ameaçados pela anexação do Kuwait por Saddam Hussein. Tais observações políticas, que desafiam o estatuto de transcendência da arte na sociedade, excedem a composição da ideologia artística americana – incluindo a do pós-modernismo. A observação de Zappa “ou, entre qualquer arte?”, também serve para o libertar de tais obscurantismos. A necessidade de haver negociantes que promovam novas ondas de artistas, a insatisfação dos artistas com o sistema de mercado que não oferecia as promessas do modernismo, levaram à “obsoletização” instantânea que caracteriza os estilos artísticos ocidentais do pós-guerra. A arte tornou-se zona esquizofrénica perigosa, uma mixórdia contraditória de retro-religião, recusa vanguardista. À medida que os comentadores tentavam ver na arte o humanismo de “equilíbrio” de um sistema, conduzido à racionalização do lucro, isso desvanecia-se à frente dos seus olhos com os arcaicos fetiches religiosos (T. S. Elliot, Bob Dylan, Arvo Pärt) ou os criptogramas auto-mutiladores do modernismo (Samuel Beckett, John Cage, Joseph Beuys). Ao manter a sua fé no modernismo e ao reconhecer a incapacidade da arte para transmitir a sua mensagem numa cultura de bens de consumo, os artistas viram-se envolvidos num paradoxo permanente, numa guerrilha de subterfúgios e recusas. Daí a preferência das instituições culturais pelos clássicos produzidos durante a fase heroica da burguesia: Shakespeare, Beethoven, Rembrandt. Reciclar os velhos serve para esconder o preocupante facto de que a sociedade capitalista moderna só produz verdadeira arte quando exalta falhas sociais, resultando numa obsessão com o passado que o modernismo, com o seu consumo filtrado de uma cultura de massas, sob o nome de arte, pouco fez para atenuar.
A busca do modernismo em Zappa é intuitiva em vez de teórica, mantendo a afirmação de que a música e a arte são filosofias concretas – um pensamento sobre o mundo sensualmente globalizante. Them or Us (The Book), a sua resposta às questões de continuidade conceptual, contém uma objeção no prefácio.
Este reles livro, feito em casa, foi preparado para as pessoas que já gostam da música de Zappa se divertirem. Não é para intelectuais e outras pessoas moribundas.
Alguns fanáticos tomam esta hostilidade para com o pensamento sistematizado como pré-requisito para compreender Zappa, o que transformaria um projeto como o presente livro numa obtusidade. Quando comparado com o filistinismo das classes “educadas”, isto é deveras tentador. Contudo, deixa os guardiães da cultura elevada fora de cena, permitindo-os ignorar Zappa como excêntrico do rock de culto. De facto, Zappa tem uma consciência do papel histórico da arte e uma visão do seu lugar nela, tão claras como materialistas.
Há muito que Zappa declarava interesse pelas possibilidades da música clássica. Depois de descobrir a existência de um compositor do século dezoito chamado Francesco Zappa, lançou um disco chamado Francesco, a partir das partituras do Zappa do século dezoito realizadas no computador. Contudo, ele não tinha dúvidas de que o barroco representava uma época de ouro da criatividade musical. Como David Ocker observou na sua nota do folheto do disco, o trabalho do Zappa do séc. XVIII era “dar ao serrote enquanto os nobres jantavam”.
Zappa desenvolveu o assunto no The Real Frank Zappa Book:
As normas praticadas nos velhos tempos começaram a ser usadas porque os tipos que pagavam as contas queriam que as “melodias” que compravam “soassem de certa maneira”.
O Rei dizia: “Corto-te a cabeça se não soar assim.” O Papa dizia: “Arranco-te as unhas se não soar assim.” O Duque, ou outra pessoa qualquer, talvez tenha dito de outra maneira – mas é o mesmo hoje. “A tua canção não passa na rádio se não soar assim.” As pessoas que pensam que a música clássica é de alguma maneira mais elevada que a música radiofónica, deviam dar uma olhadela às formas envolvidas – e a quem paga as contas.
O uso que Zappa faz das partituras musicais não tem nada em comum com os sonhos da pequena burguesia da harmonia pré-industrial, base do consumo de música clássica no século vinte (e do rock neoclássico, de Meat Loaf a Michael Nyman).
Em sintonia com outras figuras da tradição “inventiva” americana – Buckminster Fuller, Charles Ives, Harry Partch, John Cage – as ideias de Zappa têm um toque excêntrico e caseiro, mas por causa da sua atenção a factos que lhe dizem respeito (e a sua impaciência com as justificações liberais), as visões são encorajadas por filosofias radicais e artistas vanguardistas que operam em circunstâncias diferentes. De Sade e Wyndham Lewis traçaram trajetórias paralelas.
O que se segue examina as mais recentes manifestações de tais ideias em Jacques Attali e na Internacional Situacionista, contudo só mesmo Marx e Freud (e o modo como as suas ideias foram aplicadas à música por Theodor Adorno) são capazes de medir a ferocidade dizimadora da arte de Zappa.[1] Telos, Primavera 1991, No. 87, entrevista com Florindo Volpacchio, pp. 124-36. Obrigado a Matthew Caygill por me falar disto.
[2] Frank Zappa, preâmbulo de “Bebop Tango (of the Old Jazzmen’s Church)”, Roxy & Elsewhere.
[3] Nota de Frank Zappa, “The Sheik Yerbouti Tango”, Sheik Yerbouti, 1979. Elevado agora ao estatuto de filosofia menor numa entrevista recente: Zappa! (um suplemnto dos editores de Keyboard e Guitar Player), ed. Don Menn, 1992, p. 64. Aqui é expresso como uma combinação de “quando” e “que se foda” (onde “quando” pode ser interpretado como as “notas certas”).
[4] Max Ernst, Europa Depois da Chuva, 1933.
[5] Audiência no Senado sobre “pornografia no rock”, 1985.