Tenho de falar absolutamente de um filme que vi há cerca de um ano e de que gostei bastante. Trata-se de
Cidade de Deus, do realizador brasileiro Fernando Meirelles, baseado no livro homónimo de Paulo Lins editado em 1997.
A "Cidade de Deus" é uma favela do Rio de Janeiro que ficou conhecida nos anos 80 pela violência e pelo tráfico de droga e armas. O filme conta a história na primeira pessoa e em
flashback de um menino morador na favela, Buscapé, que tenta fugir ao destino quase fatídico de bandido e se torna assim espectador privilegiado dessa sociedade marginal. Através dele iremos assistir à ascensão e queda de um dos marginais mais violentos e implacáveis da Cidade de Deus: Dadinho – mais tarde Zé Pequeno.
O filme, dividido em três partes – anos 60, 70 e 80 – atravessa a vida de dezenas de personagens que se vão cruzando com a câmara de filmar/máquina fotográfica de Buscapé, e dá-nos a conhecer as suas lutas (o gangue do trio Ternura; a ascensão de Zé Pequeno), ânsias (as conversas sobre sexo; a traição de Marreco; a paixão por Angélica) e medos (a omnipresença da polícia e a pressão do outro mundo). Buscapé conta-nos a subida ao poder de Zé Pequeno, o grande chefe da Cidade de Deus, da vida dentro do seu gangue, da iniciação a que sujeita os seus “soldados”, a luta contra o gangue do Cenoura, tudo em nome do controle do tráfico de droga. O argumento tece lenta e inexoravelmente a teia à volta do herói que nos conduz a história. Primeiro é irmão de Marreco, uma das primeiras vítimas da Cidade de Deus, depois é apaixonado por Angélica que mais tarde será a responsável pela retirada do braço direito de Zé Pequeno das lides da droga, e finalmente será o fotógrafo amador que levará o gangue de Zé Pequeno para os jornais.
O torvelinho de imagens e enredos que se sobrepõem nunca é confuso, seguimos sempre as várias histórias com um misto de fascínio e preocupação, nada é deixado ao acaso e as cenas são dominadas pelo conjunto brilhante de actores que nos transportam directamente para um mundo claustrofobicamente fechado de onde é quase impossível sair. Ao assistir, temos a mesma sensação de vertigem que teríamos se tivéssemos de enfrentar os perigos, medos e limitações que aquelas personagens passam todos os dias. Tudo aliado a uma realização que faz questão de permanecer neutral mesmo perante as maiores monstruosidades como o carácter de Zé Pequeno ou a morte a que é sujeito no final do filme. Tudo se resolve fechando um círculo em que mais uma vez a luta pelo poder tem um papel central. Nada nos conduz a uma moral requentada. O filme pede-nos que tiremos nós, para as nossas vidas, a lição de vida que todas estas personagens, cada uma à sua maneira, nos deram.
Relembro duas cenas que me ficaram na cabeça e de que nunca mais me vou esquecer: a cena de iniciação no mundo do crime de um miúdo de 7 ou 8 anos que é obrigado a abater um miúdo da sua idade, e a cena da morte de Bene, no dia da sua festa de despedida, quando toda a gente é evacuada e ficamos com o pátio, onde antes assistíamos a uma enorme festa, vazio, iluminado em contra-luz onde só conseguimos distinguir os vultos de Zé Pequeno ajoelhado e de Bene baleado, deitado e inerte. Poderosas imagens tratadas pelo director de fotografia César Charlone.
Não se consegue permanecer indiferente a este filme veloz, poliédrico, poético e violento. Os méritos são muitos: dos actores não profissionais (99% deles) ao realizador e à sua equipa.
Meirelles leu o livro e contactou o argumentista Bráulio Montovani para fazer a adaptação cinematográfica. Ele sabia que queria fazê-lo sem actores profissionais. Numa estética próxima do documentário e sem a máscara do actor. Do mesmo modo que Pasolini em tantos dos seus filmes. E aqui está um dos segredos da força do filme. Estes actores não profissionais carregam para o filme uma verdade e uma generosidade muito difíceis de encontrar em actores profissionais. A disponibilidade destes jovens inexperientes comove-nos primeiro, fascina-nos depois e arrebata-nos no fim. Depois desta ideia básica, mas importantíssima, Meirelles dirigiu-se à escola de teatro de Guti Fraga, director do grupo teatral,
Nós do Morro, situado numa favela da zona sul do Rio de Janeiro, para ele o ajudar na escolha do elenco, organizando uma oficina de expressão dramática. O resultado da oficina foi a criação de uma curta-metragem,
Palace II, que ganhou inúmeros prémios e serviu como experiência para fixar a estética daquilo que viria a ser Cidade de Deus. A inclusão destes colaboradores prévios viria a revelar-se de extrema importância.
A realização de Meirelles é variada, cobrindo toda a multiplicidade de personagens e eventos, tentando criar um fresco com pinceladas rápidas e certeiras a que não deve ser alheio o seu passado de realizador de publicidade. Mas, aqui, nada é feito para encher o olho ou chamar a atenção, é tudo pesado e medido na medida do próprio filme. Por estas características não pude deixar de pensar no escritor Jorge Amado que do mesmo modo também pintou a vida destas personagens esquecidas em livros como
Capitães de Areia,
Mar Morto, ou
Suor.
Seria injusto não mencionar Katia Lund (co-realizadora) e Fátima Toledo (direcção de actores) co-responsáveis pela criação de uma obra que tem extrema importância não só a nível artístico como também a nível sociológico e antropológico.
Cidade de Deus é absolutamente imperdível.
Se já viram recomendem-no aos vossos amigos. Se não gostaram recomendem-no aos vossos inimigos. Fazia-lhes bem…
Se vc gostou de Cidade de Deus, eu te recomendo também assistir Cidade dos Homens.
Cidade dos Homens é um desdobramento do filme Cidade de Deus. Mesmos criadores, mesma equipe, mesmos atores. Mas podemos dizer também que esse projeto é um complemento do outro. Enquanto Cidade de Deus é um drama com um toque de comédia sobre traficantes no Rio, a comunidade aparece apenas como pano de fundo. Cidade dos Homens é uma comédia, com um toque de drama sobre uma comunidade no Rio de Janeiro, os traficantes aparecem só como pano de fundo. Um projeto complementa o outro. Em ambos, a eficiência da narrativa e o talento dos atores impressionam. Cidade dos Homens foi exibido na Rede Globo, com audiência surpreendente, entre 15 e 18 de outubro de 2002.
Agora pode ser encontrado em um box de DVDs com todos os episódios.