A INTERNACIONAL SITUACIONISTA E FRANK ZAPPA
O escritor que falou mais recentemente sobre o assunto da Internacional Situacionista, em relação com a música rock, foi Greil Marcus na sua arqueologia do substrato situacionista do punk – Lipstick Traces. Marcus analisa cuidadosamente as ideias conflituosas dos surrealistas, letristas e situacionistas com um tom de maravilha jovial, não recorrendo nunca à opinião ou à polémica. Ele encontra maneira de tornar estas agressivas e eletrizantes ideias espinhosas – como só um americano o podia fazer – (desenvolvidas de modo concreto, tal como Adorno descreveu a arte moderna – “desagradável no sentido de bem de consumo”) em pequenas migalhas douradas de consumo. É uma boa leitura. Apesar deste regresso, que se reflete no uso da palavra “situacionista” por toda a imprensa rock, a teoria foi originalmente explosiva e estruturava uma crítica que falava de arte e política num só fôlego. Não foi só o punk e Attali – todas as melhores ideias da crítica cultural da nova história de arte (Tim Clark era membro da ala britânica) até à literatura de vanguarda (Jeremy Prynne, Iain Sinclair), foram abandonadas pelas suas teses (só os excrementos de camelo têm mais aplicações). Uma indicação poderosa de que só os conceitos marxistas são capazes de transportar o bacilo da revolução.
No vácuo aberto pelo momento revolucionário do Maio de 1968, a IS não vingou porque fosse extremista, niilista e fria (embora o fosse), ou porque os membros escrevessem palavras de ordem nas gravatas (embora o fizessem), mas porque fazia uma análise marxista que não tinha qualquer relação com o stalinismo tanto do Partido Comunista como dos maoístas. Isto é esquecido. Não conseguiu influenciar os trabalhadores grevistas e os estudantes ocupantes e afastá-los da liderança do PC e da esquerda reformista, que começaram a devolver a revolução a De Gaulle e à polícia de choque. Não aprendeu de Lenine a necessidade de construir um partido revolucionário enraizado na classe trabalhadora: falhou. E isto também é esquecido.
Contudo, ao contrário dos tristes grupinhos de “seguidores situacionistas” que deixam críticas azedas contra tudo a apodrecer em várias livrarias de esquerda, os IS não eram anarquistas ou indivíduos românticos. Eles compreendiam a natureza do estado e a importância dos concelhos de trabalhadores; tinham uma visão realista do equilíbrio das forças de classe. Ao contrário de Sartre, viam através do terceiro mundismo de Fidel Castro e Mao; ao contrário das Brigadas Vermelhas opunham-se ao terrorismo porque não conduzia à atividade de massas; ao contrário do Partido Comunista viram a necessidade de uma especial unidade entre trabalhadores e estudantes. Por isso, as opiniões deles sobre Zappa merecem ser registadas. Em 1967, Raoul Vaneigem dizia o seguinte:
A única maneira de fazer um breve afloramento estético é atentarmos momentaneamente no espetáculo da decomposição artística: David Hockney, Frank Zappa, Andy Warhol, Arte Pop e Reggae podem ser comprados aleatoriamente em cadeias de lojas. Falar de um trabalho artístico duradouro, seria como dissertar sobre os valores eternos do petróleo.
A ideia do trabalho artístico “duradouro” revela um esteticismo incaracterístico, embora o modo como o livro de Vaneigem se deixa enfeitiçar por encantamentos puristas – repetidos ad nauseam – mostre realmente uma tendência idealista. A lista de nomes exibe a crueza da ênfase que a IS dá ao consumo (uma crueza que o pós-modernismo repete, apesar de possuir uma visão diferente). O crescimento dos anos 50 foi duro para os revolucionários: o capitalismo parecia dar tudo o que prometera. A crítica situacionista ao consumo – palavras de ordem que afirmavam que qualquer coisa que pudesse ser comprada não valia a pena, a completa aversão ao mundo mediático das famílias felizes – era um adeus definitivamente irónico aos anos 50, que depois seriam muito espoliados: desde as revistas de arte “radicais” como a Re/Search até à Igreja do Subgénio, os Devo e a auto-publicidade (o chique retrógrado dos anos 50 nos recentes anúncios de Brylcreem, por exemplo). Em Lancaster, na Califórnia, Captain Beefheart e Frank Zappa também esboçavam contra-medidas ao mundo conformista dos anúncios do pós-guerra.
Contudo, embora a crítica ao consumo signifique que mesmo uma economia em alta não nos deixa contentes, também significa que o alvo é sempre o mesmo. O cinismo de Vaneigem torna-se banal e intermitente. A possibilidade de se comprar reggae nas lojas não é aleatória, depende de uma variedade de factores: o grau de racismo na indústria discográfica, a presença de índios do oeste indígenas na área, o seu moral, o alcance da sua cultura e por aí adiante. Ao rejeitar o reggae e Andy Warhol, Vaneigem esquece que a música também pode ser o sangue da comunidade, a transmissão de notícias, conforto, fonte de força e resistência. Claro, a única maneira de distinguir entre consumidores diferentes é olhar para a sua relação com os meios de produção, o que significa olhar para eles como trabalhadores e não como consumidores. A IS só desenvolveu tal foco na classe trabalhadora depois da greve geral de 1968 ter começado. Apesar das suas muito-elogiadas “confraternizações” (partilhar uma garrafa de vinho com alguns grevistas à frente de um fotógrafo), era então muito tarde para as ideias revolucionárias da IS influenciarem o curso da luta.
O anti-consumismo de Vaneigem é, não obstante, preferível à celebração pós-modernista da “multiplicidade do baralha e torna a dar” do mercado, que de alguma maneira esquece a solvibilidade necessária para entrar no novo jardim do Éden. A IS gostava de fomentar o brilho especial que o capitalismo precisa para competir no mercado e depois concluir que se pode conseguir isso sem comprar nada. Como estratégia é bom, para pessoas envolvidas na criação de imagens de publicidade, confia no crescimento económico rápido, onde pode passar por corrente subversiva. Do mesmo modo, o punk achou que podia tomar momentaneamente a dianteira no ajustamento que o negócio do rock do final dos anos 70 conheceu, ao pegar fogo às figuras de palha do idealismo dos anos 60. Mas tanto a IS como o punk confiam na onda necessária ao desenvolvimento do capitalismo. Enquanto a explosão do rock dos anos 60 se estilhaçava no rock corporativo e disco dos anos 70 e o punk no domínio da inanidade MTV dos anos 80, parece que não se trata do simples assunto de encher as lojas com “substitutos” da revolução. Numa recessão, a retórica da IS parece desesperadamente deslocada: a verdadeira ameaça é o consumo em torrente sem quaisquer respostas críticas. Não há espaço para a crítica se expressar.
Vaneigem ataca o inimigo que conhece: os fornecedores de arte elevada que comercializam a vanguarda, arte que é precisamente projetada para resistir a tal mercado. Os anos 50 e 60 foram testemunhas de uma torrente herege de ideias anti-arte, da qual as artes visuais ainda não recuperaram. Dessas ideias hereges, a IS era a mais pura, a mais violenta, a mais engraçada e a melhor. Elevaram a um novo nível a crença de Adorno no impermutável.
Enquanto que no mundo real todos os particulares são fungosos, a arte protesta contra esses fungos ao pegar em imagens daquilo que a realidade devia ser se se emancipasse das normas de identificação impostas. Pelo mesmo princípio, a arte – a imago do impermutável – tende para a ideologia porque nos faz acreditar que há coisas no mundo real que não são para troca. No interesse do impermutável, a arte deve criar uma consciência crítica em relação ao mundo das coisas permutáveis.
Contudo, tal como os julgamentos de Adorno em relação à música radiofónica, a IS falou a partir da posição de arte elevada burguesa: só via o mercado de massas como degradação da singularidade do objeto artístico, vilipendiando implacavelmente os artistas que espalhavam produtos degradantes. Tornou-se um comité internacional cão-de-guarda, prevenindo o aproveitamento económico da anti-arte: se alguém em Roma estivesse a vender telas a metro como crítica à maneira como os expressionistas abstratos transformavam o “sofrimento” em dinheiro, a IS demoveria qualquer pessoa que tentasse fazer a mesma proeza noutro lado qualquer. Tais ideias subversivas têm uma enorme ressonância porque a ideia de arte irradia sempre o todo da sociedade, mas sem consciência de classe começam a reproduzir um desdém aristocrático pelo mercado – “Compraste numa loja? Oh, que coisa horrível.” A ideia da IS denunciar um “rasta” por ter comprado um disco de Big Youth é manifestamente absurda.
As ideias de Adorno funcionam melhor em estreita associação dialética com as de Walter Benjamin. Juntamente com a insistência de Adorno de que o trabalho artístico não pode abraçar o mercado e sobreviver, precisamos da visão de Benjamin e do novo materialismo no público de massas, que já não é mitificada pela singularidade do trabalho artístico, a “aura” (em si mesma uma versão secular do mistério religioso): o público de filmes de terror fala tecnicamente de como a tensão é criada; as considerações práticas sobre a profundidade do som grave num altifalante de doze polegadas ou num cd caseiro. Ao juntar Zappa, reggae, Warhol e Hockney que meramente conduzem “o espetáculo da decomposição”, Vaneigem ecoa Adorno ao mais alto nível, alheado do modo como a luta de classes se manifesta na música: da arena comercial como campo de batalha, uma guerra agitada por músicos, companhias discográficas e público sobre o dinheiro e o valor-prático. Essa merda tem groove? É uma pergunta materialista nunca formulada por nenhum dos tediosos debates sobre Morrisey ou Madonna como ícones do pop. Para aborrecimento dos jornalistas pop que reduzem tudo à sua conversa moralista, há valor-prático na música. Vaneigem fica tão ofendido com o espetáculo que para ele é tudo merda comercial, um monte de mercadorias sem sentido, oposto às suas rretóricas epetitivas da “vida vivida” e da “imaginação que tudo conquista”. Tais frases tornam-se meros encantamentos puristas do intruso profissional. Vaneigem falha a compreensão de que um disco de James Brown é uma coisa pessoal.
É um pouco como o argumento do pós-modernismo. Ao se opor ao regresso às velhas formas da música clássica – orquestras sinfónicas, tonalidade – o modernista é acusado de inconsistência ao gostar, por exemplo, de David Murray e da sua síntese de free jazz e swing em 1980. De facto, a acusação de inconsistência é originária de um idealismo similar ao de Vaneigem: pensar em abstrações que obscurecem factos sociais. O retorno à tonalidade na música clássica foi projetado para fazer recuar as descobertas feitas em Darmstadt nos anos 50 e 60, descobertas que não podiam ser discutidas por análises musicais escolásticas (daí o prestígio de Stockhausen, Boulez e Berio na academia) mas que alienavam os consumidores (sala vazias). Contudo, grande parte do argumento para tornar a música “mais acessível” é baseada num populismo demagógico (“multiculturalismo versus elitismo serialista”) que, de facto é favorecido pelo uso que a classe média faz da música clássica – cimento fortalecedor da identidade social, um sonho da ordem aristocrática tardia e do primitivo heroísmo burguês que só agora pode ser reavaliado como “kitsch”. A nova tonalidade adopta o irracionalismo em vez de enfrentar as consequências da forma (o que explica o reencontrado respeito pela religião por parte dos seus aderentes).
A análise material, por outro lado, não julga a arte por oposição a abstrações imutáveis, relaciona a arte com o seu papel histórico. O blues, o ragtime e o swing são invenções de pessoas oprimidas, formas adversas da mestria burguesa. A verdade da música pode estar em estreita ligação com a manutenção de especificidades étnicas que lutam contra a homogeneização académica e comercial e não seguir uma necessária evolução. Julgamentos abstratos sobre os “avanços” e os “recuos” (por exemplo, condenar John Lee Hooker de ser reacionário por ainda tocar blues) são inapropriados. O uso que o músico negro faz do blues não é o mesmo que um músico clássico faz da sonata. Da mesma maneira que falar das “raízes” de um compositor branco europeu, adoptando o calão nacionalista negro, contém uma corrupção racista (mesmo se o próprio W.E.B. Du Bois tenha tirado a sua ideia de orgulho negro das tradições filosóficas alemãs que alimentaram a teoria racial). Como Lenine mostrava na sua discussão sobre nacionalismo, uma ideia pode ter diferentes consequências políticas, dependendo do papel global (imperialista ou colonizado) da nação em questão. A crítica idealista, que julga as coisas de acordo com uma disposição neutra de ideias abstratas (ex. “consumo” versus “não consumo”), provoca normalmente asneiras desastrosas.
O sucesso do feminismo nos estudos culturais tem conduzido aos termos “sexista” e “não sexista” substituindo as categorias morais de “melhoramento” ou “corrupção” usadas tradicionalmente por Matthew Arnold e F.R.Leavis. Isto parece basear-se em distinções estéticas em vez de conceitos morais. Contudo, quando usado fora de uma compreensão concreta da forma musical, os termos constroem meramente um outro idealismo, suscetível – como todos os idealismos – de contradições gritantes. Quando Chris Blackford deseja aplaudir os Van Der Graaf Generator na publicação musical radical Rubberneck, ele argumenta que a voz de primeira classe de Peter Hammill é “imaculada de uma misoginia derivada dos blues”. Susan McClary, por outro lado, diz que “não há equivalentes brancos de Bessie Smith ou Aretha Franklin – mulheres que cantam poderosamente o espiritual e o erótico sem a estrutura misógina e punitiva da cultura europeia. “Tanto Blackford como McClary justificam os gostos com referências a um sistema moral que transcende tanto a arte como a sociedade com que lidam; e contradizem-se completamente. Apesar dos dois serem membros do campo “anti-sexista”, o típico desprezo “anti-rockeiro” dos ingleses e de Blackford pelos blues entra em contradição com McClary que escreve na América, onde os estudos sobre negros forçaram a um certo respeito crítico pela forma.
As dialéticas negativas, por outro lado, veem as formas como matérias sedimentadas: “analisá-las é o mesmo que nos tornarmos conscientes da história inerente armazenada nelas.” Em vez de reduzir os trabalhos artísticos a meros exemplos de ideias abstratas, traça a sua proveniência material. Claro, isto significa que o “julgamento” crítico deve, em última instância, relacionar-se com uma visão política global, uma ligação que é anátema do liberalismo, onde só um compromisso para com certas “ideias” pré-selecionadas separa os condenados dos livres. O suporte político da luta da emancipação negra nos E.U. da América significa que o uso de rags por músicos de vanguarda como David Murray ou Henry Threadgill ou Buell Neidlinger é visto como solidariedade social em vez de afastamento das instituições antiquadas (e no caso do neo-conservadorismo de Wynton Marsalis, talvez não – estas coisas só podem ser resolvidas pelo ouvido).
Vaneigem coloca uma abstração – a condenação do consumo – perante o contexto social onde ocorrem as coisas. Ele parece completamente alheado da necessidade de arranjar um bom disco para a festa de sábado à noite. Longe de ser consumido “aleatoriamente” em cadeias de lojas, a presença de Zappa no mercado tem sido uma luta, um empreendimento épico. Embora Zappa tenha começado como compositor autodidata com experiência em composição serial, a sua decisão de “obter público” não envolveu a supressão da lógica do seu material, por algo que agradaria aos ouvintes da classe-média. Ele também queria “matar a ignóbil rádio”, desafiar a anemia pop com R&B. Apesar das contenções da teoria pós-modernista, o antagonismo de classe ainda persiste. Não há nenhuma música que passe fluentemente do “simples” ao “complexo”: as diferentes formas musicais têm dinâmicas próprias. Zappa vislumbrou o seu caminho ao usar o materialismo do público em massa, a sua fome por novos efeitos e choque; uma maneira de subordinar essa dinâmica a um compromisso vanguardista dos novos sons.