O desejo egoísta do lucro não só é incapaz de fundar qualquer sociedade como tende, pelo contrário, a inviabilizá-la.
Para o antropólogo francês Marcel Mauss, a dádiva estabelece ligações que não só estruturam as sociedades como são o combustível que as alimenta. A multiplicidade de funções do acto de dar, mas também de retribuir, opera a vários níveis nas nossas sociedades.
Os actos de partilha de bens têm especialmente lugar em ocasiões especiais – no caso estudado pelo livro Ensaio Sobre a Dádiva do antropólogo francês – da sociedade polinésia da Samoa: matrimónios, nascimentos, circuncisões, doenças, fertilidade das jovens, ritos fúnebres e comércio. Contudo, estas ocasiões são sustentadas por práticas quotidianas que assentam nos mesmos princípios de partilha e comunhão e a que o antropólogo chama momentos em que o homem tem consciência de si mesmo e da sua relação com os outros – “apresentar qualquer coisa a alguém é apresentar qualquer coisa de si”.
Para o autor francês a dádiva e a retribuição são ainda o garante da paz e o primeiro contacto com o outro. O que ambos os lados ganham com este sistema de trocas, dádivas e tributos é uma organização dos indivíduos não só a nível público como a nível privado. Mesmo as acumulações de valores das várias riquezas que se constituem – e que podiam constituir alguma espécie de “não partilha” – têm um conteúdo estético, não representam apenas valores de ordem moral ou prática. O próprio carácter da dádiva define a ligação que ela pretende estabelecer; o acto de dar não está dissociado do presente dado.
Estas trocas são simultaneamente voluntárias e obrigatórias, interessadas e desinteressadas, mas também igualmente úteis e simbólicas. Toda a sociedade depende da troca de bens porque as dádivas são sempre uma forma de comunicação com o estrangeiro, com o outro, às vezes com o desconhecido. Do mesmo modo definimos o outro e através das dádivas somos justamente retribuídos. Assim fazemos nascer alianças, tanto matrimoniais como políticas, religiosas, económicas, jurídicas ou diplomáticas. Trocar é comunicar com o outro, é o primeiro passo para a socialização. A dádiva é, pois, o primeiro e último garante da civilização tal como a conhecemos. E como é óbvio, as alianças necessitam de paz para serem duradouras.
É como se o homem tivesse de descobrir o valor da dádiva para depôr as armas. Os bretões contam na Crónica de Artur, como o rei, com a ajuda de um carpinteiro da Cornualha, idealizou aquela maravilha da sua corte, “aquela Távola Redonda”, à volta da qual os cavaleiros nunca mais litigariam. Antigamente, por “invejas sórdidas”, ensanguentavam os banquetes mais belos com zaragatas estúpidas, duelos e assassinatos. O carpinteiro disse a Artur: “Construo-vos uma bela távola à qual se poderão sentar mais de mil e seiscentas pessoas e da qual nenhuma será excluída... Nenhum cavaleiro poderá fazer guerra, porque todos os lugares serão iguais”.
Não há lugar de honra, por isso não havia disputas. Para onde quer que Artur levasse a sua Távola, alegre e invencível se sentia a sua companhia. É assim que ainda hoje as nações se tornam fortes e ricas, felizes e sãs. Os povos, as classes, as famílias, os indivíduos poderão enriquecer, mas serão felizes apenas quando souberem sentar-se, como cavaleiros, à volta de uma riqueza comum. É inútil procurar muito longe o bem e a felicidade. Eles residem na imposição da paz, no ritmo ordenado do trabalho, colectivo ou individual, na riqueza acumulada e depois redistribuída, no respeito e generosidade recíprocas que a educação ensina.
Para Marcel Mauss, uma tribo de Samoa contém tantas informações sobre a nossa organização social quanto as crónicas do Rei Artur. Para ele, ambas demonstram que os diferentes regimes sociais tratam todas as coisas, dos bens às pessoas, passando pelo trabalho ou os serviços e ofícios religiosos, como matéria de transmissão e de entrega. Como garante de equilíbrio. O dar e o receber precisam de paz para florescer; para Mauss o contrário é também verdade: “recusar a dar, negligenciar o convite, como recusar receber, equivale a declarar guerra; é recusar aliança e comunhão”.
A DÁDIVA DO NATAL
Tentarei colocar o Natal no centro deste conhecimento sobre a dádiva.
À primeira vista, nas sociedades contemporâneas ocidentais, a época do Natal é a festa onde se trocam mais dádivas, onde o espírito de comunhão é mais exacerbado, ouvimos falar de solidariedade e de enfermidades, combatem-se com mais fervor as injustiças, lembramo-nos mais frequentemente dos outros. Mas será mesmo assim? Será mesmo de levar a sério todas estas preocupações? Reflectem-se no dia a dia? No tal conhecimento de si mesmo e da sua relação com o outro? E se não, porquê?
Em todo o mundo, o Natal é a festividade que celebra o nascimento de Jesus Cristo. Trata-se de um acontecimento intimamente relacionado com a igreja católica. Esta prática milenar foi sofrendo várias transformações e beneficiações ao longo dos séculos.
Na Idade Média emergiu a tradição do presépio através das ordens franciscanas, e cerca do século XIV a árvore de Natal, que simboliza Cristo, com as suas luzes combatentes da escuridão.
No século IV d.C. nasce em Demre, na actual Turquia, São Nicolau de Mira que, segundo a lenda era amigo dos desprotegidos e em particular das crianças. A ele estão associadas várias lendas como a de ressuscitar crianças ou fazer aparecer ouro e pão e que é o protótipo do santo benfeitor que oferece prendas.
É este santo que finalmente contribui, em meados do século XIX, para Clement Clark Moore fixar a imagem do actual Pai Natal – um senhor de barba branca, simpático, que voa pelos céus conduzindo um trenó puxado por oito renas e que, carregado de presentes para as crianças, aparece na quadra natalícia para recompensar todas as crianças que “se portaram bem” durante o ano.
Não foi por acaso que falei do Pai Natal e que o mencionei como último desenvolvimento das transformações que o Natal foi sofrendo. Em meados dos anos 30, a figura deste ícone sofreu a sua última e extraordinária modificação ao adoptar cores e imagem de acordo com uma conhecida marca de refrigerantes! Ao misturar publicidade, cujo único propósito é a criação de lucro – quer se queira quer não uma espécie de alienação, ou distorção –, e uma cerimónia tão importante, fundadora de sociedades, destrói-se a noção, precisamente, da consciência de si mesmo e da relação com o outro. Em si mesma, esta alteração ou modificação não constitui nenhum problema para as pessoas que comemoram a quadra, tal distorção não é perceptível por elas, porque a mesma prática de distorção ocorre no dia a dia, com a esquizofrenia crescente das nossas sociedades, e as crianças são, inclusive, levadas a pensar que o Pai Natal existe e ele é que oferece e distribui presentes.
À luz da teoria de Marcel Mauss são criadas alianças e laços entre as pessoas que são presenteadas e o Pai Natal. E não entre as pessoas. Daqui se vê como à primeira vista o Natal pode parecer uma época de comunhão entre os homens mas afinal não passa de um pretexto para se “mostrar que se dá”. Esta exteriorização do acto da dádiva explica por que é que a mesma não é completamente banida. Ela é, de facto, sentida como fundadora e importante, mas o seu significado profundo está cada vez mais distante de nós.
Em minha casa (e provavelmente em milhares de outros lares), o “espírito natalício” começa a sentir-se em finais de Outubro inícios de Novembro. Por volta do final de Novembro, as crianças e os avós partilham do mesmo entusiasmo. Foi assim quando eu era criança, é assim como pai e acho que será assim quando for avô. Eles antecipam a chegada do momento da noite de dia 24 quando, depois do jantar tradicional, do bacalhau cozido com todos, a família se reúne e distribui os presentes que foram acumulados à volta da árvore durante os últimos meses.
Neste ano (2007), a árvore de Natal foi montada antes do dia 1 de Dezembro, facto inédito. Estamos em Janeiro e ela ainda lá está, a piscar, à espera do Dia de Reis para ser desmantelada. Este rituais cumprem-se todos os anos, religiosamente, e têm sido diferentes de ano para ano. Lembro-me que nos Natais dos anos setenta ainda se ouvia falar do Menino Jesus, e que as prendas eram para o Menino Jesus.
Do mesmo modo que em relação ao Pai Natal, se pensarmos que as dádivas são fundadoras de alianças vemos rapidamente que era estabelecida, nesse caso, uma aliança com Jesus Cristo e não entre as pessoas. O deslocamento da dádiva para um deus faz com que a acção ganhe o carácter de tributo e que se ligue mais a uma celebração religiosa.
Ao longo dos anos fui assistindo a várias ligeiras modificações nas comemorações. Progressivamente, o carácter religioso desapareceu e deu lugar a uma excitação que tem por base os presentes, mas não o acto de dar. Saber quem deu determinado presente tornou-se insignificante. O que interessa realmente é a noite de reunião da família, a festa e os presentes – a excitação e o excesso. O interesse desta colisão de práticas aparentemente contraditórias reside na luz que ela pode fazer sobre a nossa sociedade e os valores em que ela assenta.
Se, por um lado, como Marcel Mauss defende, as nossas sociedades assentam numa prática que confere à dádiva uma importância fundamental e se o Natal se transformou numa época em que as pessoas dão presentes umas às outras através de um intermediário, a que é que assistimos nesta época tão importante?
Embora a controversa data de 25 de Dezembro para o nascimento Jesus Cristo, estabelecida pela igreja no século IV d.C., não tenha grande justificação científica. Tratou-se apenas de uma tentativa de cristianização de ritos pagãos que se festejavam por altura do solstício de Inverno – o nascimento do deus sol invencível – a Saturnália, festividade romana em honra do deus Saturno que envolvia a troca de presentes. Esta característica, a par com outra tradição cristã (os três Reis Magos, guiados por uma estrela, visitam o deus acabado de nascer e oferecem-lhe presentes: ouro, incenso e mirra) ajudou a fixar o Natal como “o dia” para troca de ofertas.
Uma Visita de São Nicolau
Era véspera de Natal, quando por toda a casa
tudo era imóvel, nada levantava asa;
as meias cuidadosamente penduradas à chaminé,
à espera que São Nicolau lá pusesse o pé;
os miúdos aconchegadinhos nas caminhas
enquanto pelas cabeças dançavam doces prendinhas;
a mamã com o lenço e eu com o meu chapéu,
tinhamos apenas desligado as cabeças para uma hibernação no céu,
quando no jardim se ouviu um chocalhar,
eu pulei da cama para ver o que se estava a passar.
Para a janela voei como um raio,
abri as persianas e disse saio ou não saio
a lua ao colo da neve acabada de cair
fazia os objectos lá em baixo luzir,
quando vi aparecer aos meus olhos apenas,
um trenó em miniatura puxado por oito renas,
com um condutor velho, tão rápido e enérgico,
que eu vi logo que só podia ser São Nico.
Chegaram mais rápidos que águias,
e ele assobiava e gritava e chamava pelo nome aos seus guias;
"Vamos Raio! Vamos, Bailarina! Vamos Saltadora e Raposinha!
Vá Cometa! Vá, Cupido! Vá Trovão! Vá Relampagozinha!
Por cima do alpendre! Por cima do muro
deitem a correr, deitem a correr sem medo do escuro!”
Como folhas secas que voam à frente do Furacão,
quando encontram um obstáculo, para o céu curvam e então,
voaram para o topo das casas os guias,
com o trenó de brinquedos e de São Nicolau carregado todos os dias.
E depois, como um tilintar no sótão ouvi
o casco de cada uma das renas a bater por ali.
Quando enfiei a cabeça e olhei para o alto,
pela chaminé abaixo chegou São Nicolau com um salto.
Dos pés à cabeça de pele vestido
de cinzas e fuligem estava ele revestido;
uma trouxa de brinquedos às costas trazia,
parecia um caixeiro-viajante quando a sua carga abria
os olhos – como brilhavam! As covinhas na cara – que riso feliz
as bochechas era rosas, uma cereja o nariz
a boca desenhada para cima num riso leve
e a barba do queixo branca como a neve;
segurava com os dentes a boquilha de um cachimbo
e o fumo envolvia a cabeça como uma coroa de flores num limbo
tinha rosto largo e barriga pouco fina
que abanava quando se ria, uma tigela de gelatina
ele era um belo duendezinho redondinho e gorducho,
eu ri-me quando o vi, apesar de tudo;
um piscar de olho e um menear de cabeça,
disse-me logo que não era nenhuma ameaça
nada disse, direito ao trabalho foi
encheu todas as meias; e virou-se bruscamente depois,
e pousando ao lado do nariz o dedo
e acenando, pela chaminé subiu sem medo;
chegou ao trenó assobiou à equipa
para longe como a flor do cardo eles voaram
ouvi-o exclamar enquanto se afastava,
“Feliz Natal e para todos boa noite”.
Tradução livre do original de Clement C. Moore.
Com o pretexto do lucro e através da publicidade, os cidadãos são aliciados a serem consumidores insaciáveis e a conduzir os seus negócios e garantir os seus postos de trabalho através de práticas agressivas. Porém, quando chegam a casa, à família, ao lar, é esperado que essas mesmas pessoas se comportem de modo completamente diferente. Isto contribui largamente para o tal desconhecimento de si mesmo e da relação com os outros que Marcel Mauss considera fundador de sociedades. A família reunida é a mais próxima, embora, ocasionalmente, possam estar presentes relações mais distantes.
Revi-me na frase "A família reunida é a mais próxima, embora, ocasionalmente, possam estar presentes relações mais distantes." e confirmo que é assim, por experiência própria.