Escrevo este manifesto para demonstrar que se podem realizar acções opostas, ao mesmo tempo, num único e fresco movimento. Sou contra a acção; e em relação à contradição conceptual, e à sua afirmação também, não sou contra nem a favor.


Pedro Marques @ 23:27

Seg, 16/11/09

Chéri conta a história de um amor improvável nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial. A história de um triângulo amoroso onde o terceiro vértice é ocupado por uma mãe prostituta, na época de ascensão meteórica de uma aristocracia que aprendia a viver com as novidades de então: a electricidade, o automóvel, o cinema, o avião, as acções na banca. Era um tempo de burburinho, de excessos, de barreiras que se quebravam, fossem elas de nível intelectual ou social. Não eram só os avanços ao nível da tecnologia, mas também a nível artístico e social. É nesta época que nascem movimentos, são escritos dezenas de manifestos artísticos, o socialismo está quase a ser posto em prática (a Revolução falhada de 1905 na Rússia), tudo está a ser posto em causa.

O filme está carregado dessa visão excessiva, nas cores dos figurinos (excepção para Chéri e Edme – os órfãos), nos cenários – a casa de Lea com os ostensivos motivos da Belle Époque, a varanda da casa de Madame Peloux, excessiva na vegetação, tal como o jardim onde as duas falam sobre o casamento –, e na sugestão da história de uma relação libertina que esconde um possível incesto. Os tempos eram propícios à prostituição. Era a época de ouro. E é à volta de duas prostitutas da cidade-luz que a história vai rodar. Uma dessas cortesãs, a mais bonita de todas, respeitada e invejada: Lea de Lonval, que agora, após vários anos de actividade, pensa em retirar-se. A outra: Madame Peloux, retirada numa vida de puro ócio, a viver dos rendimentos e a programar o futuro do filho.

O filme abre com a caracterização dessa sociedade, mostrando-nos fotografias de época, em sucessão, nomeando prostitutas e estabelecendo uma relação de distanciamento através da narração do realizador. Este distanciamento será útil mais tarde quando virmos as personagens na sua enorme solidão e ainda no final quando se concluir que Chéri, por não conseguir viver com a ideia de que nunca mais sentirá um tão grande amor, deu um tiro na cabeça. Mas para já, as últimas palavras lançam a intriga da introdução: “Lea de Lonval não se pode apaixonar.”

Do outro lado está Fred Peloux, conhecido por Chéri. Frequenta o feérico Maxime apesar do feitio taciturno e introvertido. Alternadamente a narração convoca a movimentação da câmara. Ora observando a placidez e calma do quarto de Lea, ora rodopiando na frenética actividade do Maxime.

A juventude de Chéri atrai Lea, tal como a profundidade de sentimentos desta seduz a misantropia do jovem. O encontro é não só inevitável como provocado pela mãe. Madame Peloux fecha a partir desse momento o triângulo da relação amorosa. No princípio, funciona como catalizador, ela, que sempre foi ausente, agora quer que o filho aprenda uma ou duas coisas com esta rival que ela teme mas que também admira. Para Chéri e Lea o casual encontro rapidamente se torna um caso com contornos mais sérios do que se poderia esperar, os dois acabam por manter a relação durante seis anos. É tanto mais estranho quanto Chéri é talvez o oposto daquilo que Lea sempre teve toda a vida. Habituada que estava às confissões de todos os homens. Ele é silencioso, guarda em si todo o mistério da sua despudorada juventude. Quando ela lhe pede para contar alguma coisa sobre si próprio, ele responde que não há nada para dizer. Ela chega a confessar que não consegue criticar o seu carácter porque ele não parece possuir um.

A intimidade que partilham é sublinhada pelo facto de os dois se terem “baptizado”: Chéri pôs a alcunha Nounoune a Lea, e esta nomeou Fred com o nome Chéri. Este pormenor pode parecer banal, mas é ele que vai caracterizar toda a relação dos dois. Ao vincar a relação, Hampton e Frears começam a dar contornos incestuosos à relação. Chéri possui a mãe através de Lea e sem o saber. É isso que o filme explora ao colocar Madame Peloux no outro vértice da relação.

A organização estrutural do filme confirma este jogo íntimo e perigoso. Não só as imagens recorrentes que Lea imagina ver (Chéri a fumar ao portão) e que são inserts que visam potenciar o desconcerto psicológico da personagem, mas também as narrativas cruzadas, como a sequência do casamento de Chéri e Edme entrecortada por Lea em casa a chorar, ou a viagem de comboio do casal cruzada com a cena de Lea em casa com a criada admirando a nova esmeralda, que surgem como contrapontos emocionais. Nestes momentos, toda a vacuidade da vida quotidiana é contraposta à profundidade dos sentimentos.

São inúmeros os pormenores que ao longo do filme vão confirmando este triângulo amoroso edipiano. A conversa que os dois têm na primeira noite que estão juntos começa por ser precisamente sobre a mãe, Lea confessa que talvez nunca tenha gostado dela. Chéri concorda que ninguém gosta por causa do seu feitio. Outro pormenor que fortalece esta perspectiva é o facto de Edme, a rapariga de 18 anos que casará depois com Chéri, ser também ela filha de uma cortesã. Para além de ser Madame Peloux a forçar o casamento com o filho, por razões monetárias (embora confesse a Lea que é porque quer ter netos), numa cena mais tarde, Edme e Chéri confessam um ao outro que no fundo são dois órfãos, não só de pai, que nunca conheceram, mas também de mães sempre ausentes – talvez seja por isso que o casamento não resultará.

Mas talvez a cena mais esclarecedora seja a cena de duplicação da relação. Enquanto Chéri está em lua de mel Lea vai a casa de Madame Peloux e é confrontada com um par que reproduz a sua relação. A casa da cortesã chega Lili e Guido. Por entre conversas fúteis de prostitutas murchas, como a antiga cantora de ópera e uma espécie de travesti que joga com ela às cartas, Lili está vestida como um palhaço e obriga o seu imberbe “namorado” a enterrar a cara entre as suas mamas. A cena é grotesca. A obscenidade da relação é tão gritante que tal imagem não deixa de a perseguir e surgirá mais tarde como insert dos seus pensamentos.

Na cena final, quando Chéri volta e passa a última noite com Lea, na manhã seguinte, percebemos porque as coisas não podem voltar a ser o que eram: ela porta-se como uma mãe: reserva bilhetes para fugirem, aconselha-o a tomar os seus comprimidos de ruibarbo, repreende-o por ele arrancar a pele das unhas dos pés. Ela diz-lhe que o silêncio dele faz lembrar o de uma criança de 12 anos. Ele responde que será sempre assim e se se comporta dessa maneira a culpa é dela(!). Quando Lea, num acesso de ciúmes, começa a dizer mal da pobre Edme e da sua mãe, ele manda-a calar porque quando ela fala assim lhe faz lembrar a mãe.

A imagem que Chéri tem de Lea é uma imagem idílica assombrada pela recordação da mãe.

Chéri é a história de um amor improvável? Que pergunta é aquela que Lea/Michelle Pfeiffer/Stephen Frears fazem no plano final quando o rosto sério da personagem olha directamente a câmara enquanto a voz off nos conta do fim de Chéri? É a história de um amor condenado? Ou é a história de um amor que não se pôde repetir? Talvez a resposta esteja no olhar penetrante do plano final.

 

Chéri de Stephen Frears. Argumento de Christopher Hampton baseado no livro Chéri de Colette. Com Michelle Pfeiffer, Rupert Friend, Kathy Bates e Felicity Jones.