Já há muito tempo que não prosseguia esta odisseia chamada As Dialécticas Negativas das Habilidades do Caniche de Ben Watson, sobre o trabalho de Frank Zappa. Para além da tradução ser bastante difícil não tenho tido tempo para lhe dedicar a atenção que merece. Para os mais assíduos, posso dizer-vos que ainda nem cheguei a meio do livro... abraços zappianos a todos. Ainda andas por aí Xavier...?
CANICHES E FILOSOFIA
Em Apostrophe (‘) o assalto a Platão surge-nos através de um blues-falado, em diálogo permanente, chamado ‘Stink-Foot’. Foi inspirado no anúncio de televisão do spray desodorizante pedial Mennen, onde um cão desmaia depois do seu dono tirar os sapatos. Como salientou Zappa:
Se pensam que tenho um fetiche com cães, estão muito enganados. Não é uma coisa profunda, é diversão apenas. Os caniches são um bom mecanismo para veícular certas ideias filosóficas que de outra maneira seriam mais difíceis de passar.
Fédon é o trabalho de Platão sobre a imortalidade da alma, consiste no relato da morte de Sócrates por um dos seus discípulos preferidos, chamado Fédon. Em palco, Frank Zappa andava a apresentar ‘Dirty Love’ com o seguinte relato da génese dos caniches.
No início, Deus criou a luz. Pouco depois, Deus criou o caniche. Ora, como se devem lembrar da vossa infância, há muito tempo, Deus era fantástico a fazer coisas. A sua qualidade e perícia baixaram um bocado desde aí (os japoneses continuaram o trabalho no ponto onde ele parou), mas quando Ele projectou originalmente o Caniche, este era um cão bastante arguto e bonito. Tinha pêlo bem distribuido por todo o seu galante e pequeno corpo tipo-canino (a mim parece-me bem, e a vocês?). Depois Deus fez dois grandes erros. O primeiro chamou-se Homem e o segundo chamou-se Mulher. A Mulher olhou para o Caniche e disse para consigo: ‘Epá, eu gostava muito de foder este cão, só que ele não está suficientemente na moda para mim’. De onde o Homem saiu imediatamente do Jardim do Éden, arranjou um emprego e trouxe um cheque à Mulher, que pegou no dinheiro, saiu de casa e comprou uma tesoura. Pegou na tesoura e tosquiou o Caniche nas seguintes importantes áreas: Focinho, Tórax, Medula, Manágua, Ornamento (aqui). E depois colocou o cão numa posição que fosse favorável aos seus pendentes procedimentos eróticos. Pôs o cão assim, deitou-se, meteu as pernas no ar assim e olhou bem nos olhos do acima mencionado Caniche e disse:
Dá-me
O teu amor obsceno
Como se te pudesses render
A um qualquer dragão dos teus sonhos
Na Dialéctica da Iluminação Adorno estabeleceu uma ligação entre os bobos anões da corte absolutista e a moda dos cães de colo. Quando fala das mulheres numa sociedade gerida por machos, ele explica que elas encontram saída no
neo-budismo e nos cães pequineses, cujas caras distorcidas, tanto hoje como nos velhos quadros, nos fazem lembrar aqueles bobos que foram ultrapassados pela marcha do progresso. As dimensões pequenas do cão, tal como as suas cabriolas funambulescas, mostram ainda os contornos mutilados da natureza.
Adorno fala de um sentimento de terror similar ao evocado pelo caniche. Adorno explica as nossas reacções usando um verniz freudiano-marxista; Zappa junta intuitivamente os temas de acordo com a sua estética surrealista-documental, mas ambos estão a falar dos mesmos assuntos. O caniche tosquiado e o anão (Evelyn o cão ‘pondera o significado do comportamento de uma pessoa de baixa estatura’ em One Size Fits All) ambos representam a natureza subjugada.
Quando Bubba (o director de estrada de Zappa da digressão de 1976 e também de Tony Orlando e Dawn) perdeu no gamão com Smothers, o guarda-costas de dois metros de Zappa, aquilo que ele perdeu foi a barba (se Smothers perdesse tinha de deixar de rapar a cabeça). Em concerto, no Troy, em Nova Iorque, 1976, Smothers barbeou Bubba ao vivo, no palco. Evento que substituiu a normal palestra dos caniches (a que Zappa se referia como ‘discurso sobre as origens da sedução do caniche’). Quando lhe perguntaram como se sentia por ter sido barbeado ao vivo em palco, Bubba respondeu, ‘Sinto-me um imbecil!’, (schmuck) termo ídiche para a uma pele circuncisada. Tal como Dalila tirou a coragem a Sansão cortando-lhe o cabelo, o ritual do tosquiar do caniche é análogo à castração.
Fédon/Bobi, procurando o tapete do conforto doméstico e assegurando-se da sua imortalidade, vai buscar obedientemente os chinelos para a sua dose de ‘consolação’. Ao ser tosquiado, contudo, ele aprende outra coisa: a actualidade da perda, castração e mortalidade.
Fédon – Vou-te dizer como foi. Aconteceu que eu estava, justamente à sua direita, num banquinho ao pé do catre, ficando ele num plano muito mais alto. Afagando-me a cabeça e abarcando com a mão os cabelos que me cobriam a nuca – pois sempre que se lhe oferecia ocasião gracejava a respeito da minha cabeleira – disse-me: Decerto é amanhã, Fédon, que vais cortar esta bela cabeleira?
Penso que sim, Sócrates, respondi.
Não, se me aceitares um conselho.
Que devo, então, fazer? Perguntei.
Hoje mesmo, disse, cortarei a minha, como farás com a tua, se o nosso argumento vier a morrer e nos revelarmos incapazes de lhe dar lume e vida. Pela minha parte, se estivesse em teu lugar e o argumento me escorregasse por entre os dedos, faria um juramento à feição dos Argivos, de não deixar crescer os cabelos enquanto não vencesse em luta franca a proposição de Símias e Cibete.
Nas habilidades do caniche, tal como nos sonhos, os símbolos condensam múltiplos significados – as contradições coexistem lado a lado. O cão Bobi é uma perversidade polimórfica tosquiada e reduzida ao nível genital; o cão Bobi é uma natureza mutilada e confinada e desbastada pela civilização; o par Bobi/Fédon é uma aspiração esperançosa de crença na imortalidade de quem, depois das esperanças terem sido defraudadas, corta a cabeleira em sinal de luto.
Eh, eh, eh... que enjoo...
Então o Bobi ergueu-se e rebolou no chão
Olhou-me bem nos olhos
E sabes o que é que ele disse?
Era uma vez
Alguém me disse
(Isto é um cão a falar agora)
Qual é a tua continuidade
Conceptual
Bom, eu disse-lhe nessa altura (Disse o Bobi)
Isso deve ser fácil de ver
O enigma está
No Apóstrofo (‘)
Bom, tu sabes
O homem que estava a falar com o cão
Olhou para o cão e disse:
(Assim como quem olha desconfiado)
‘Não podes dizer isso!’
Ele disse
‘NÃO É ASSIM, E NÃO PODES!
NÃO O FAÇO, NÃO É ASSIM!
NÃO TEM, NÃO É, NEM SEQUER NÃO SERÁ
NEM DEVERIA... NEM PODERIA'
Ele disse 'NÃO NÃO NÃO!'
Eu disse-lhe 'SIM SIM SIM'
E disse ‘Faço sempre assim...
Este boogie está mesmo enrolado!’
O CANICHE MOOORDE!
O CANICHE CHUPA-O!
O CANICHE MOOORDE!
O CANICHE CHUPA-O!
Para além de outros diálogos, Fédon foi usado por Erik Satie numa cantata chamada Socrate, escrita em 1918 e apresentada no Festival Zappa Zappa’s Universe em Nova Iorque, Novembro de 1990 (Zappa não pôde estar presente por doença). É uma possibilidade para estabelecer uma ligação em “tempo real” entre Zappa e Platão, já que Zappa sempre mostrou interesse em Erik Satie. Os organizadores leram Socrate apresentando o herói de Platão a uma luz positiva, estabelecendo mesmo comparações entre Zappa e Sócrates como homens íntegros que resistiam à vulgaridade das massas. (...) Sócrates prossegue a sua argumentação dizendo que, já que a alma é imortal, a sua morte não deveria fazer com que Fédon cortasse o cabelo em sinal de luto. Há muitas outras temáticas filosóficas que revelam que Zappa é o vingador de Platão, não o seu aliado.